JOSÉ GRAZIANO DA SILVA
Diretor-geral da FAO
O maior avanço socioeconômico no Brasil nas últimas décadas foi a retirada de quase 40 milhões de pessoas da pobreza extrema, em razão, sobretudo, de diversos programas de proteção social. Tal feito foi determinante para que o país reduzisse significativamente o número de pessoas sofrendo de fome. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de brasileiros em situação de desnutrição crônica caiu 82% entre 2002 e 2013.
Todos os anos, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), em parceria com outras agências do sistema da ONU, publica o relatório do Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo (SOFI, na sigla em inglês), com base, sobretudo, em dados e estatísticas fornecidos pelos países membros com referência ao ano anterior.
Tal relatório – como o próprio nome diz – tem como principal objetivo retratar e mapear a situação da segurança alimentar no mundo, a fim de orientar governos, organizações internacionais, instituições, ONGs e todos os outros atores relevantes na elaboração e implementação de políticas públicas e programas de combate à fome e a todas as outras formas de má nutrição.
Com base nos dados fornecidos à FAO pelo IBGE, o SOFI de 2014 indicou que no Brasil, em 2013, menos de 5% da população padecia de fome. O Brasil atingia níveis semelhantes aos de países desenvolvidos, no que se refere à porcentagem de pessoas desnutridas. Há consenso entre as agências da ONU de que, quando a desnutrição crônica atinge menos de 5% da população de um país, o problema da fome deixa de ter características endêmicas e limita-se a determinados bolsões específicos. O Brasil, portanto, deixava o Mapa da Fome no Mundo.
A partir de 2016, no entanto, líderes nacionais e diversos veículos de comunicação começaram a ventilar a possibilidade de a fome voltar a assolar as famílias brasileiras mais vulneráveis, em razão da crise econômica, do desemprego crescente e da redução dos gastos dos programas de proteção social.
Tal contexto poderá resultar, de fato, no retorno do Brasil ao Mapa da Fome? Sim, já que a pobreza é um dos principais fatores no mundo que impedem o acesso da população aos alimentos, depois dos conflitos armados e dos impactos da mudança do clima, sobretudo na África Subsaariana.
As estatísticas mostram, contudo, que, até 2016, a fome não havia aumentado de forma significativa no Brasil. Como explicado no início deste artigo, os relatórios SOFI analisam dados referentes ao ano anterior. O SOFI de 2017 (o último a ser publicado pela FAO), em sua versão regional para a América Latina (“Panorama de la Seguridad Alimentaria y Nutricional en América Latina y El Caribe”), indica que a fome no Brasil, em 2016, acometia menos de 2,5% da população, num patamar semelhante a Uruguai e Cuba.
Dados recentes divulgados pela Pnad Contínua, do IBGE, entretanto, sinalizam um aumento da extrema pobreza no país em cerca de 11% de 2016 para 2017 (de 13,3 para 14,8 milhões de pessoas). Tal incremento da pobreza extrema poderá, sim, refletir no aumento do número de pessoas que passam fome no país.
Nos próximos dias, a FAO e suas organizações parceiras publicarão o SOFI 2018, com base nos dados referentes a 2017, fornecidos pelos países membros. Ainda que o Brasil não ultrapasse a simbólica barreira dos 5% da população – e assim esperamos que aconteça –, o momento não é de celebração, mas sim de alerta máximo. O país não pode arriscar as conquistas sociais obtidas nos últimos anos, no momento em que busca sair de uma das maiores crises políticas e econômicas de sua história.
É importante, também, mencionar que o aumento da pobreza traz outras consequências negativas para a sociedade, de efeitos mais duradouros: outras formas de má nutrição, mortalidade infantil, aumento de doenças transmissíveis, baixo rendimento escolar.
O que está em jogo não é se o Brasil voltou ou não ao chamado Mapa da Fome em 2017 (que vai ser refletido no SOFI 2018), mas sim o futuro. Temos de olhar para a frente: o importante é discutir 2018 em diante, e não o passado 2017. É preciso evitar que um eventual avanço da fome aconteça também nos próximos anos e décadas. Para isso, além dos gastos públicos com programas sociais, é fundamental também promover um crescimento inclusivo e substantivo – muito além dos atuais 1% ao ano –, e que gere empregos de qualidade. O governo brasileiro será sempre o primeiro a ter conhecimento da situação da pobreza e da segurança alimentar no país, pois é ele que fornece os dados utilizados pela FAO.
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