BRASIL
Euzébio Jorge Silveira de Souza, Ana Luíza Matos de Oliveira e Barbara Vallejos Vazquez
Imagem por Caio Borges
Os argumentos de “modernização” do trabalho para retirar direitos são os mesmos utilizados no século XIX, que geraram sociedades pauperizadas e violentas
A reforma trabalhista completou em agosto nove meses de vigência e já é evidente seu fracasso na missão de criar mais empregos formais de qualidade e contribuir na retomada do crescimento econômico.
Com o aprofundamento da crise econômica a partir de 2015, o Brasil acompanhou os malabarismos teóricos de economistas ortodoxos para estabelecer uma relação causal entre a superação da crise econômica e a destruição do aparato político e institucional que promovia seguridade ao trabalhador e mitigava a assimetria no mercado de trabalho. A reforma trabalhista, mal debatida e aprovada em tempo recorde pelo Congresso em julho de 2017, foi apresentada como medida imprescindível para a “modernização” das relações de trabalho no país e para a superação da crise econômica. Os mesmos defensores da austeridade1 que transformou uma desaceleração em recessão econômica em 2015 defendiam a reforma trabalhista como saída para a crise.
A reforma, ao flexibilizar as relações de trabalho, reduzir direitos trabalhistas, permitir a livre negociação entre trabalhadores e empresários e deixar que o próprio mercado defina níveis de remunerações e condições de trabalho, contribuiria para a retomada do crescimento econômico, segundo seus defensores. Tal pensamento é baseado na ideia de que o mercado de trabalho brasileiro não era flexível e que o desemprego e a queda da atividade econômica são responsabilidades dos trabalhadores. Em primeiro lugar, o Brasil possui um mercado de trabalho historicamente marcado por informalidade, alta rotatividade, baixos salários e desrespeito à regulação do trabalho. Ademais, a pressuposição de que os trabalhadores são responsáveis pelo desemprego está fundada na ideia de que estes preferem o desemprego a trabalhar por baixos salários – o que justificaria retirar direitos trabalhistas como seguro-desemprego, com o propósito de combater o “corpo mole”. Por outro lado, o nível de emprego depende do volume de gastos e investimentos na economia como um todo: buscar entender o nível de desemprego observando apenas o mercado de trabalho é como tentar apreender o funcionamento do motor de um carro olhando para suas rodas.
Até poucos anos atrás, as estatísticas oficiais acerca do trabalho não haviam sido capazes de incorporar especificidadesbrasileiras e ao mesmo tempo adequar-se a padrões internacionais de medição das situações de emprego e desemprego. No entanto, com a Pnad Contínua (PnadC), houve uma tentativa de medição mais complexa de fenômenos que impactam os mercados de trabalho periféricos como o Brasil (ao contrário da Europa): subemprego, desalento, entre outros, consolidados no indicador “Subutilização da força de trabalho”.
Sobre esse indicador, do segundo trimestre de 2017 para o segundo trimestre de 2018, cresceu de 26,3 milhões para 27,6 milhões a quantidade de pessoas subutilizadas, isto é, os subocupados por insuficiência de horas trabalhadas, os desocupados e a força de trabalho potencial. Para comparação, antes da adoção das políticas de austeridade no Brasil (o que ocorreu a partir de 2015), havia no país 15,3 milhões de subutilizados no segundo trimestre de 2014, quase a metade do número hoje.
A análise desse indicador composto revela que, à dessemelhança do que se observa em mercados estruturados, no Brasil existe uma ampla gama de situações que não podem ser adequadamente mensuradas pelo binômio emprego/desemprego. Aliás, o grande aumento do total de desocupados (+101%) no Brasil desde 2015, início da crise econômica – 6,4 milhões de pessoas em dezembro de 2014 para 12,9 milhões em junho de 2018 –, foi acompanhado pelo aumento do subemprego e do desalento, sintomas dos tempos presentes. O desalento chegou a 4,8 milhões no segundo trimestre de 2018, ponto mais alto da série histórica. De dezembro de 2014 a junho de 2018, o número de trabalhadores em situação de subemprego aumentou 38%, e a força de trabalho potencial, 91%.
Entretanto, a reforma prometia, além de reduzir a desocupação e o desalento, gerar novos postos de trabalho. Segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), o saldo de emprego formal entre novembro de 2017 e junho de 2018, período de vigência da reforma, é de 3.226 postos. Já o saldo de geração de empregos intermitentes é de 22.901, e de postos em tempo parcial, de 12.507. A PnadC revela também uma degradação do mercado de trabalho, expressa na redução em 10,1% do total do emprego com carteira assinada no Brasil, passando de 36,5 milhões para 32,8 milhões entre outubro, novembro e dezembro de 2014 e abril, maio e junho de 2018, ponto mais baixo da série histórica. Entre o quarto trimestre de 2014 e o segundo trimestre de 2018, houve recuo da ocupação, que passou de 92,9 milhões para 91,2, representando uma queda de 1,8% no período e aumento no total de empregadores (10,1%), dos trabalhadores por conta própria (6,0%), do emprego sem carteira (4,8%) e do trabalho doméstico (4,8%).
E é bom lembrar que os argumentos de “modernização” do trabalho para retirar direitos são os mesmos utilizados no século XIX, que geraram sociedades pauperizadas e violentas. Na mesma linha, a reforma agrava problemas históricos brasileiros, como alto desemprego e informalidade, degradação da qualidade dos postos de trabalho formais, grande peso do desemprego oculto por situações de trabalhos precários ou desalento, que acabam empurrando os desempregados para a inatividade.
A partir da reforma tem ocorrido uma substituição de ocupações mais estáveis, como emprego por tempo indeterminado, por ocupações em tempo parcial e contratos intermitentes, PJs, terceirizados etc. Em suma, o impacto real da reforma trabalhista não se deu sobre o desemprego, que persiste, e sim nos postos de trabalho formais, que estão sendo paulatinamente substituídos por contratos precários.
*Euzébio Jorge Silveira de Souza é mestre em Economia Política pela PUC-SP, doutorando em Desenvolvimento Econômico na Unicamp, presidente do Centro de Estudos e Memória da Juventude (CEMJ) e conselheiro do Conselho Nacional de Juventude (Conjuve); Ana Luíza Matos de Oliveira é professora visitante da Flacso-Brasil e economista pela UFMG, mestra e doutoranda em Desenvolvimento Econômico na Unicamp; e Barbara Vallejos Vazquez é mestre em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp, graduada em Ciências Sociais pela USP, técnica do Dieese e professora da Escola Dieese de Ciências do Trabalho.
1 Essa política de austeridade teve e tem profundos impactos no mercado de trabalho e nos gastos sociais, e é analisada no estudo “Austeridade e retrocesso: impactos sociais da política fiscal no Brasil”, Brasil Debate e Fundação Friedrich Ebert, São Paulo, ago. 2018. Disponível em: .
LE MONDE DIPLOMATIQUE
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