sexta-feira, 26 de junho de 2009

O Irã de Ahmadinejad e a modernização congelada




O Irã de Ahmadinejad e a modernização congelada
por José Flávio Sombra Saraiva
Caminhei pelas ruas da Teerã de Mahmud Ahmadinejad. Era inverno de neve sobre as calçadas brancas de trânsito difícil da imensa metrópole. Era o início de 2007. Não vi mesquitas em cada esquina, em contraste com outras capitais de Estados teocráticos naquela região. Parecia um país em franco progresso, até mesmo florescente, povoado por gente hospitaleira e inteligente.

Moças sorridentes e surpresas, nos quatro bancos que entrei na tentativa de trocar uns dólares por moeda local, olhavam-se sem muita discrição. Notei que elas não eram muito distintas das minhas alunas na Universidade de Brasília. Dirigiam seus carros, lenços pela metade na cabeça (esta uma pequena transgressão aceita pelo regime), animadas com os estudos nas universidades da capital do Irã. Movi-me em táxi de norte ao sul na capital iraniana, ainda que gesto não muito comum para um visitante estrangeiro.Parecia um país em franca modernização, mas que fora congelando no próprio movimento para frente. Por um lado chamava atenção riqueza e imponência. Suas classes altas e médias bem estabelecidas e laicas, na parte norte de Teerã, em conciliação interessada com as elites clericais, controlavam a economia nacional. De outro, classes menos remediadas nas partes outras da imensa capital, movendo-se em carros rápidos ou transportes públicos na maior metrópole do Oriente Médio, compunham a massa de manobra do regime. Burburinhos, mistura de cores, gente de todas as partes. Esse contraste ficou como uma imagem indelével da capital da velha Pérsia, de história de mais de três mil anos de formação.

Teerã anda em chama nesses dias. Será muito difícil avaliar plenamente as conseqüências dos fatos no calor das chamas. Imprevisível a repercussão futura dos protestos pós-eleitorais. Dizer que o regime vai cair é precipitado. Afirmar que as formas democráticas ocidentais tomarão conta do Irã é previsão sem lastro. É adequado supor, no entanto, que algo muito relevante está ocorrendo naquele país: o Irã não será o mesmo que emergiu da revolução dos aiatolás há trinta anos atrás. Por quê?

Em primeiro lugar, porque há séria fissura interna no regime de Teerã. Seria impossível pensar que o Mir Hossein Moussavi, líder da oposição, agisse apenas por si. Há apoio compreensível de setores do Conselho dos Guardiões ao processo de modernização estancado pela forças conservadoras lideradas pelo aiatolá Ali Khmanei. E desde a velha Pérsia, passando pelo regime o xá Reza Pahlevi, as contendas iranianas jamais foram resolvidas sem violência política dos atores em competição. Embora a história não se repita, algumas regularidades dizem algo acerca do Irã moderno.

Em segundo lugar, porque há forças sociais e políticas novas no Irã. Tais forças são filhas, contraditoriamente, da modernização que testemunhei. São aquelas forças que emergiram dos olhos que brilhavam nos jovens ante a chegada do professor brasileiro nos ambientes universitários. Eles querem mais que estabilidade política e modernização conservadora. Eles pretendem influir no poder, abrir o regime e acesso aos meios clássicos da sociedade burguesa ocidental. É uma força profunda, imaterial, que marcará certamente, na linguagem da internet e das câmaras digitais, parte do destino do Irã. Será impossível calar essa gente depois do sangue derramado pela primeira mártir de Teerã.

Em terceiro lugar, porque o Irã não está solto no mundo complexo que vivemos. Já foi criticado por governantes europeus pelos excessos persecutórios do regime e pelos atentados aos direitos humanos. O país foi considerado, pelos ianques, ponta afiada do eixo do mal. Embora o regime de Teerã venha buscando ampliar o leque de aliados, até mesmo na América do Sul, a confiança dos interlocutores depois dos fatos recentes pode diminuir. A permanecer a reeleição do presidente Ahmadinejad sob suspeita, suspeita estará cooperação internacional com um país que já está na berlinda em tema crucial como o da disseminação nuclear.

País de diplomacia sofisticada, história três vezes milenar, ruas alegres no verão, de filmes de esperança, espera-se com apreensão no mundo que o Irã saiba conduzir sua transição. Sem interferências do lado de cá, mas com respeito aos direitos e visões dos jovens que vi e conversei, necessitamos de um Irã em paz e reconciliado com a sociedade internacional.

José Flávio Sombra Saraiva é Professor titular de Relações Internacionais da Universidade de Brasília e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (fsaraiva@unb.br).

Meridiano 47

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