Foto de Carolina da Riva
Um menino mergulha no rio Içana diante da aldeia, que fica a três dias de barco do município mais próximo: a internet já chegou a esse cenário idílico da Amazônia.
A aldeia Tucumã está em polvorosa. As três casas de farinha produzem a pleno vapor. Peixes moqueados assam nas grelhas suspensas. O trapiche da prainha do Içana está repleto de canoas, e meninos refrescam-se do calor com mergulhos no rio. Perto dali, reunidas em assembleia, as lideranças baniua decidem os próximos passos da tribo. Na maloca cercada pela floresta, quase 100 homens dividem a palavra, entre eles capitães de comunidades, veteranos e atuais estudantes da Escola Pamáali, o moderno centro de ensino projetado pelos próprios baniua em 2000. Os jovens apresentam ideias de pesquisas e projetam slides e tabelas de Excel no telão improvisado com um lençol branco - parafernália eletrônica alimentada por um barulhento gerador chinês. As discussões da Organização Indígena da Bacia do Içana (Oibi) são as mais variadas: o manejo das espécies de peixe, o fornecimento de sua cestaria milenar a uma rede de lojas de São Paulo, um possível contrato com uma grande indústria de cosméticos.
Em outras palavras: sustentabilidade, negócios, novos mercados - parece a pauta de uma reunião executiva em São Paulo. Os baniua, contudo, são habitantes ancestrais de um dos lugares mais remotos do planeta. Curiosos por tecnologia, hábeis comerciantes e politizados, eles projetam-se como protagonistas de um modo de vida moderno entre as etnias que habitam o vasto universo de florestas intactas, rios caudalosos e montanhas da região conhecida como Cabeça do Cachorro, no Amazonas. Inteiramente demarcada por reservas, a Cabeça do Cachorro é uma espécie de país indígena cuja capital é São Gabriel da Cachoeira, às margens do rio Negro. Um número simples dá conta dessa singular sociedade civil: 90% da população da cidade tem sangue nativo. Em janeiro - já não era sem tempo -, pela primeira vez uma dupla de índios tomou posse na prefeitura local. O novo prefeito, Pedro Garcia, é tariano. Seu vice é André Fernando, um baniua de Tucumã.
Essa aldeia modelo é uma das 70 comunidades da etnia ao longo do Içana brasileiro. No total, os baniua, que se autodenominam walimanai ("os outros que vão nascer"), são estimados em 17 mil indivíduos. A maior parte deles vive na Colômbia, e uma minoria na Venezuela. No Brasil, são cerca de 6 mil, distribuídos por toda a bacia do Içana e seus afluentes e pelo centro urbano de São Gabriel. Adaptados ao solo ácido e de baixa fertilidade dessa porção da Amazônia, onde se concentram extensas faixas de campinaranas - uma floresta baixa, arbustiva -, os baniua sobrevivem graças a antigas técnicas de cultivo de roça (sobretudo da mandioca-brava), caça, pesca e uma rede de trocas com outras etnias. E, hoje, com o comércio de seu artesanato.
A jornada pela qual se escoa a produção é hercúlea. Ofício masculino por tradição, a cestaria de arumã (a planta da qual se extrai a fibra matriz do artesanato baniua) é escoada Içana abaixo numa canoa longa, o bongo. A cada cachoeira do Içana - são pelo menos dez -, os belos jarros, balaios e peneiras são descarregados, e o bongo precisa ser arrastado pelas pedras. Ao chegar a São Gabriel, a mercadoria roda 30 quilômetros até o porto de Camanaus, onde é embarcada numa viagem de mil quilômetros, ou três dias, pelo rio Negro com destino a Manaus. De lá, entra numa balsa até Belém (mais 1,5 mil quilômetro) e num caminhão para São Paulo (outros 2,1 mil), onde é comercializada. Muitas peças podem seguir depois para o exterior de avião. Detalhe: os baniua já aceitam pedidos pela internet.
O futuro desembarcou em um local sagrado da Amazônia. Em Tucumã fica o igarapé Pamáali, "a morada das flautas e trombetas sagradas", objetos de importância central no xamanismo do grupo - para mulheres e não-iniciados, é proibido ver os instrumentos sagrados, sob pena de morte. Não por acaso, era em Tucumã que sempre aconteciam grandes reuniões dos clãs, regadas a muito caxiri, a bebida fermentada feita da mandioca.
Tais eventos, porém, foram sendo condenados com a crescente adoção dos baniua ao credo evangélico, cujos cultos chegam a reunir quase 2 mil pessoas de diversas aldeias entoando a Bíblia no coração da Floresta Amazônica. A conversão começou no fim da década de 1940, com a chegada da missionária norte-americana Sophie Muller. Vinda da Colômbia e identificada como um messias por muitos baniua do Içana, Sophie convenceu os indígenas a jogar seus apetrechos cerimoniais no rio e expôs as flautas sagradas às mulheres. Rompeu assim com ritos de iniciação da tribo e a evangelizou. Sua palavra, apesar de não ser unânime, perdura. "A dimensão dessa nova religiosidade é latente na maioria das comunidades, mas acabou por fortalecer as organizações entre os índios e seu contato com o mundo externo", avalia o ecólogo Adeílson Lopes da Silva, que vive entre os baniua há três anos.
Um contraponto leigo para a fé evangélica parece estar no grande projeto da vida dos baniua, a Escola Pamáali. O projeto teve início em 1998, ano em que o governo federal reconheceu os direitos dos povos indígenas do alto e médio rio Negro, demarcando um conjunto de cinco terras contínuas com 10,6 milhões de hectares, entre elas as áreas de ocupações tradicionais dos baniua. Com o auxílio do Instituto Socioambiental e da Foirn, os baniua firmaram parceria com uma instituição da Noruega para arregimentar verbas e inaugurar a escola, cujo conceito pedagógico prega a valorização das raízes linguísticas. "Precisávamos alfabetizar e ensinar em baniua. A dificuldade de nossas crianças de aprender a ler e a escrever em português era enorme", explica Juvêncio Cardoso, coordenador da Pamáali. Em nove anos, a escola formou mais de 80 professores, preencheu prateleiras com pesquisas e deu vida aos primeiros livros para alfabetização e sobre tradições em Baniua. "Até então, a única obra traduzida na nossa língua era a Bíblia", afirma Juvêncio.
Vindos das diversas comunidades da bacia do Içana, os 70 alunos (apenas baniua ou curipaco) que a escola recebe por ano, sem pré-requisito de sexo ou idade, permanecem na Pamáali em regime de internato. São três bimestres por ano, sempre com um intervalo de dois meses, período em que regressam às aldeias para processar as pesquisas e divulgar o conhecimento adquirido. São aulas de português, matemática, ciências, informática - nas quais os alunos atualizam e-mails e acessam a internet graças a uma antena via satélite. Estudam, ainda, história e geografia, complementadas com o conhecimento transmitido pelos mais velhos sobre o patrimônio cultural do povo. "Estamos reconhecendo os saberes antigos da agricultura fundamentados no calendário astronômico, recuperando cantos, lendas e rituais. E reaprendendo os segredos das plantas medicinais, das árvores e dos animais", conta o aluno Elton José, 19 anos, há três na escola. "O pé no passado é importante para que possamos seguir em frente", avalia o vice-prefeito André Fernando. "Foram dois séculos de contato avassalador com os brancos. Sofremos escravidão no período da exploração da borracha e depois uma forte opressão em nossas crenças pelos padres salesianos, seguida da invasão evangélica. Tudo isso quase acabou com a sabedoria das nossas tradições."
A agenda diária dos estudantes reserva certos horários do dia para atividades tradicionais da tribo. "Os homens saem para pescar, abrir roçados, apanhar lenha e produzir cestaria. Já as mulheres vão para a roça, colher mandioca, pimenta, fazer farinha, preparar o almoço", conta o baniua Benjamin Ray, que, além de professor de informática, acumula os cargos de jornalista, fotógrafo e blogueiro da escola.
O sucesso da Pamáali fez com que, em 2008, a secretaria de Educação de São Gabriel da Cachoeira transformasse o método de alfabetização em língua materna como política pública do município. A ideia é expandi-lo a todas as escolas indígenas do país - são mais de 178 mil estudantes índios matriculados em 2 517 escolas especiais em 24 estados. "A Pamáali está provando ao meu povo a importância de nos conectarmos com o mundo globalizado sem nunca perder de vista nossa identidade cultural", afirma André.
De fato, os baniua descobriram o Google, e sem abrir mão da vida na floresta. O equilíbrio entre essas duas experiências tão contrastantes pode ser sua grande lição para o mundo.
National Geographic Brasil
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