Por Robert Draper
Foto de Amy Toensing
Simon Booth tinha 250 cabeças de gado em sua fazenda no sudeste da Austrália - algo que seus filhos, Ryan e Claire, talvez não possam ver no futuro.
O clima o deixou na mão. À margem de uma rodovia num ponto no sudeste da Austrália, um homem está sentado em sua caminhonete, meditando sobre os vários aspectos nos quais seu mundo acabou. Alguns deles são óbvios. Perto da caminhonete, seu gado leiteiro pasta na relva ao lado da estrada. As vacas estão todas saudáveis, graças a Deus. Mas são apenas 70. Cinco anos atrás, seu rebanho contava quase 500 cabeças. As vacas estão pastando perto de uma estrada pública - "ilegalmente", admite o homem, mas o que lhe resta fazer? Não há mais grama em sua fazenda. A propriedade tornou-se uma terra árida, de vegetação raquítica, onde a menor brisa levanta uma nuvem de poeira. E ele já não tem condições de comprar sementes. Esse fazendeiro, que nunca foi rico mas também nunca foi pobre, acumula dívidas de centenas de milhares de dólares. São aquelas vacas que observa através do para-brisa que lhe proporcionam toda a sua renda atual.
Seu nome é Malcolm Adlington, e ele tem 52 anos. Há 36 é produtor de leite, o que significa que às 5 da madrugada está de pé para a primeira ordenha do dia. Não faz muito Adlington ainda aguardava com expectativa o ritual da visita dos produtores de leite da região. As autoridades estaduais reuniam os produtores para uma ida a uma fazenda considerada exemplar - e várias vezes foi escolhida a de Adlington, uma propriedade pequena mas próspera nos arredores de Barham, no estado de Nova Gales do Sul. Nessas ocasiões os colegas examinavam suas vigorosas vacas alimentadas com cereais. E perguntavam detalhes de seus cercados viçosos e repletos de feno, e Adlington tinha o maior prazer em compartilhar as informações, sabendo que eles fariam o mesmo se estivessem em seu lugar.
Esse era o espírito daquele negócio - e também o da Austrália. Um homem desfrutava de toda a liberdade para fazer o que achasse melhor e também para revelar suas estratégias bem- sucedidas, pois tinha uma serena confiança em que seu esforço e sua engenhosidade iriam triunfar. "Mas isso", diz agora Adlington, "foi antes da seca." Uma década atrás, ele empregava cinco ajudantes. "Agora somos apenas minha mulher e eu. Nos últimos três anos, não recebemos nada de água. E isso está acabando com a gente."
No entanto, existe água. Dá até para vê-la correndo sob a rodovia principal a menos de 2 quilômetros do local onde ele parou a caminhonete. Ali passa o Southern Main Canal, o principal canal de irrigação que sai do trecho meridional do lendário rio Murray. Junto do rio Darling e de outros cursos d'água, eles constituem a bacia hidrográfica Murray-Darling, fonte de toda água que serve Adelaide, a capital da Austrália do Sul, e de 65% de toda a água utilizada na agricultura do país. Adlington tem autorização para retirar pouco mais de 1 bilhão de litros de água por ano do sistema fluvial. O problema é que a água tem de ser dividida por um número excessivo de interessados: a cidade de Adelaide, as imensas fazendas do agrobusiness, as áreas úmidas protegidas. Por esse motivo, nos últimos três anos, o governo de Nova Gales do Sul reduziu a quase zero a cota de água de Adlington. E isso não o exime de pagar pela cota, mesmo que não possa usá-la. Pelo menos até que termine a seca. Enquanto isso, para sobreviver, ele acabou tendo de se desfazer pouco a pouco de seu precioso plantel.
"É fácil ficar deprimido", diz Adlington, calmo e sem alterar a voz. Mas o fato é que nos últimos tempos nem ele mesmo se reconhece. De repente se surpreende brigando com a mulher, Marianne, ou gritando com os filhos. Não tem mais dinheiro para encher o tanque e ir à cidade com Marianne, como costumavam fazer. Com todas as outras propriedades sendo abandonadas, o vizinho mais próximo com quem seu filho pode brincar agora vive a 15 quilômetros dali.
Adlington já colocou à venda suas terras, herdadas de seus pais. "Não apareceu nenhum interessado", diz. Desfazer-se da fazenda era a última coisa que ele desejava. Mas também, que diabos!, quando foi que o pai ou o avô tiveram de aguentar uma maldita seca de sete anos?
Já se passaram três áridos anos desde a última visita a alguma fazenda-modelo. Em vez disso, agora são comuns os eventos para reforçar o moral dos moradores, com nomes como Enfrentando Tempos Duros ou Dia de Folga. Ou Dia do Deleite, do qual vai participar hoje a mulher de Adlington. No Dia do Deleite, dezenas de mulheres de fazendeiros locais recebem, de graça, sessões de massagem, tratamento dos pés ou cortes de cabelo. Um funcionário do órgão público de assistência aos atingidos pela seca serve chá para as mulheres e as incentiva a falar sobre os assuntos que mais as preocupam. E todas repisam capítulos diferentes da mesma história: "Faz dois anos que não plantamos nada"; "Nossa fazenda está prestes a acabar"; "Vendemos quase todo o rebanho, animais maravilhosos de que cuidamos durante 20 anos"; "Não aguento mais ficar acordada ouvindo o gado mugir de fome".
Mesmo assim, as reuniões mais tocantes não ocorrem ali, e sim em lugares menos públicos, como uma modesta sede de fazenda nos arredores da cidadezinha de Swan Hill. Uma funcionária do governo especializada em finanças rurais, sentada a uma mesa na cozinha, aconselha um cultivador de frutas e sua mulher a pedir falência, uma vez que as dívidas do casal ultrapassam o valor da fazenda e uma tempestade de granizo acaba de devastar seu pomar.
Segurando a mão da mulher, com os olhos marejados, o fazendeiro mal consegue pronunciar a frase fatídica: "Sem isto não tenho por que viver". A mulher conta que está tão preocupada com o marido que toda hora vai ao pomar para ver se ele não se matou com um tiro na cabeça. Quando termina a reunião, a funcionária acrescenta os nomes deles a uma lista de alerta para a supervisão de pessoas que podem se suicidar.
Em Barham, Malcolm Adlington continua sentado sozinho na caminhonete, sem ter para onde ir, apenas vendo o rebanho diminuir e os campos se transformarem em um deserto. Tudo o que lhe resta fazer é contemplar.
O continente habitado mais árido do mundo está ficando sem água de vez. Além desse fato óbvio, nada mais a respeito da seca na Austrália é fácil de entender. Embora os australianos tenham passado por muitos períodos de aridez e sobrevivido a eles, a atual temporada, que se prolonga há sete anos, é a mais devastadora de que se tem registro na história do país. As chuvas, quando caem, parecem ter malevolência própria - desviando-se das terras cultiváveis durante a época de plantio no inverno e inundando cidades importantes como Queensland. Para muitos, esses padrões de precipitação erráticos exibem a marca ameaçadora de mudanças climáticas ocasionadas pela atividade humana. Acredita-se que a frequência e a severidade de desastres naturais como essa seca vêm aumentando. E é inegável que, como aponta o cientista australiano Tim Kelly, "constatamos uma elevação de três quartos de grau na temperatura nos últimos 15 anos, o que tem provocado uma evaporação muito maior de nossas reservas de água. Se isso não é uma mudança no clima, não sei o que seria".
Levou um certo tempo para a Austrália tomar consciência dessa realidade. Afinal, o país foi domado por otimistas tenazes que conseguiram sobreviver em uma das regiões menos férteis do planeta. O cientista australiano Tim Flannery a chama de "ecossistema de parcos nutrientes", uma região cujo solo tornou-se velho e infecundo por não ter sido revolvido por geleiras no período de 1 milhão de anos para cá. Os europeus que se estabeleceram nas encostas da bacia Murray-Darling - uma imensa planície semiárida - foram tranquilizados por uma se-quência de anos chuvosos em meados do século 19 e pensaram ter descoberto um Jardim do Éden. Reproduzindo as práticas comuns em suas terras de origem, os colonizadores derrubaram 15 bilhões de árvores. Sem se darem conta dos perigos de romper um ciclo de água estabelecido e de eliminar uma vegetação bem adaptada a condições áridas, os australianos introduziram ovelhas, vacas e plantações muito dependentes de água e estranhas a um ecossistema desértico. Em seguida, a incessante exploração agrícola dessas terras para extrair a nova riqueza da Austrália esgotou ainda mais o solo.
Por esse motivo, um rio tornou-se artéria vital para a sobrevivência da região. Tal como o Mississippi, nos Estados Unidos, ou o São Francisco, no Brasil, o rio Murray, com seus 2 530 quilômetros de comprimento, adquiriu uma aura mitológica, simbolizando possibilidades infinitas. A rede de canais que dele saem (os billabongs), o eucalipto-vermelho, o bacalhau-do-murray, o cisne negro são elementos tão arraigados no espírito australiano quanto as imensidões vazias no interior do país. Desde a nascente, nos Alpes Australianos, até a foz, no oceano Índico, o estreito rio serpenteia no sentido noroeste, alimentado pelas águas dos rios Murrumbidgee e Darling, e delineia um longo trecho da divisa entre os estados de Nova Gales do Sul e Victoria, antes de entrar na região semiárida da Austrália do Sul e lançar-se ao mar na baía Encounter.
Ao longo do século 20, o Murray foi retalhado por um enorme conjunto de diques, eclusas e barragens de modo que fosse aproveitado ao máximo pelos agricultores que dependem de irrigação na bacia. Em consequência disso, diz o ex-ministro da Água Malcolm Turnbull, "hoje o que temos é um regime artificial no rio. Por ser regulado, o caudal agora aumenta quando normalmente seria baixo e diminui quando a natureza o elevaria". Essa manipulação acarretou efeitos imprevistos. A irrigação fez com que subissem os níveis de salinidade, o que por sua vez envenenou as zonas úmidas e tornou impróprias para o cultivo áreas imensas.
A precariedade do suprimento de água jogou um estado contra o outro, as grandes cidades contra as áreas rurais, autoridades ambientais contra irrigadores e pequenos agricultores contra as superfazendas apoiadas pelo governo - todos competindo por uma mercadoria cada vez mais escassa. Muito além do celeiro nacional em torno do sistema fluvial Murray-Darling, todas as áreas urbanas mais importantes tiveram de enfrentar as restrições no uso de água. O trauma é agudo nos baluartes rurais que prezam a autossuficiência, como a comunidade de produtores de leite em Nova Gales do Sul da qual faz parte Malcolm Adlington, e que estão se transformando em vilarejos-fantasmas. Extensas plantações foram destruídas pelo calor e pela baixa umidade, e setores inteiros de produção - de arroz, algodão e frutas - estão à beira da ruína.
Nos dias que correm, a típica autoconfiança australiana parece, na esteira da crise da água, seguir cada vez mais o famoso roteiro proposto pela psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross para as "etapas do luto": negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. A décima quinta maior economia do mundo está aprendendo uma dura lição sobre os limites dos recursos naturais numa época de mudanças climáticas. O lado positivo disso é que os australianos podem vir a ensinar algo ao resto do mundo industrializado.
No distrito de Riverland, no estado da Austrália do Sul, um indivíduo de 48 anos avança sobre seu pomar de frutas cítricas com uma máquina de terraplenagem, derrubando 800 laranjeiras. Ele sabe o que está fazendo. Durante décadas, o poderoso rio Murray transformou essa região em um luxuriante tabuleiro de olivais e pomares de cítrus, damasqueiros e abacateiros. Mas agora os burocratas que cuidam da água anunciaram que os australianos do sul podem usar apenas 16% do total que costumavam retirar do rio por ano. Assim, o fazendeiro Mick Punturiero, de família de origem italiana há três gerações no país, teve de fazer uma escolha difícil e decidiu sacrificar as laranjeiras de modo a usar a cota de água em seu valorizado pomar de limeiras.
Dois meses depois, Punturiero ainda está tomado de raiva enquanto me serve um copo de suco de lima. "Por que levaram tanto tempo para reconhecer essa crise?", pergunta. Ele para e toma fôlego: "Fico muito perturbado quando falo desse problema. O que aconteceu é criminoso." Quanto ao crime e aos responsáveis por ele, Punturiero tem hipóteses em profusão. Mas culpa sobretudo as autoridades que incentivaram o desenvolvimento de atividades agrícolas muito além dos níveis sustentáveis. Todavia, mesmo nos momentos mais reflexivos, jamais lhe ocorre que parte do problema é a insensatez de cultivar cítrus no lado errado da "divisa".
Essa divisa é a Linha de Goyder, um traço que marca o limite da região onde há níveis de chuva suficientes para o cultivo agrícola na Austrália do Sul. Em 1865, o agrimensor George Goyder realizou uma extraordinária viagem a cavalo para identificar o ponto em que os campos davam lugar a terrenos mais áridos de vegetação esparsa. Os colonizadores da Austrália orientaram-se pela Linha de Goyder a fim de distinguir as terras aráveis daquelas impróprias para a agricultura. Nem sempre, porém, eles a levaram em conta: a cidade de Renmark, por exemplo, fica no lado errado da Linha de Goyder, mas isso não impediu que dois irmãos canadenses, os Chaffey, ali instalassem um sistema de irrigação apenas duas décadas após o alerta do agrimensor.
Na realidade, os irmãos Chaffey estavam três décadas à frente de seu tempo. Logo após a Primeira Guerra Mundial, o governo australiano implantou um esquema de povoamento que oferecia aos veteranos do conflito terra, água e equipamentos em condições favoráveis. Nas décadas seguintes, pomares, vinhedos e trigais brotaram do solo árido e desértico ao norte da Linha de Goyder. Um canal após o outro foi escavado para levar a água do rio Murray até as novas plantações - e, mais tarde, até imensos trechos destinados ao cultivo de arroz, cuja produção requer água em abundância. No início da década de 1970, a Austrália era um importante exportador desses produtos, os grupos de defesa do setor agrícola haviam se tornado uma formidável força política e o governo estava vendendo licenças para uso de água a qualquer um interessado em ser seu próprio patrão e que pudesse suportar sozinho eventuais períodos de seca.
O avô de Mick Punturiero, um imigrante calabrês, comprou suas primeiras terras de um veterano da Segunda Guerra prestes a se aposentar. O perigo de lavrar a terra em região tão árida não devia ser evidente para o avô de Punturiero, um homem que não tinha outra formação além da habilidade para cultivar uvas.
Com tanta retirada de água, o nível do rio Murray começou a baixar e os campos passaram a apresentar um crescente teor de salinidade. As providências tomadas só fizeram agravar o problema. Técnicas de irrigação à prova de vazamento fizeram com que menos água retornasse ao ecossistema. Filtros de sal impediam que as plantações fossem destruídas, mas requeriam o bombeamento de imensa quantidade de água. Por fim, em 1995, a Comissão da Bacia de Murray-Darling impôs um limite para o volume de água que cada estado podia retirar do rio. Mesmo assim a farra continuou. Fazendeiros que tinham licenças de água mas nunca as haviam usado começaram a negociá-las. Empresários do setor industrial receberam incentivos para montar megafazendas e implantaram extensos bosques de oliveiras e amendoeiras na região da bacia hidrográfica. Enquanto isso, os governos estaduais de Nova Gales do Sul e Queensland desrespeitavam os limites de extração de água e continuavam a emitir novas licenças.
Dez anos atrás, Mick Punturiero era o maior produtor de lima da Austrália do Sul e estava empenhado em fazer tudo certo. Empregava a mais avançada tecnologia para economizar água. Tudo que excedia suas necessidades ele devolvia ao governo para aplicações ecologicamente corretas. Mesmo assim, já vislumbrava as consequências de uma retirada crescente do Murray. Ele conta que, no final da década de 1990, chegou a alertar uma autoridade estadual: "Vocês precisam parar com esses projetos. Estamos administrando mal nossos recursos de água". E lembra-se, como se fosse ontem, da resposta que ouviu: "Mick, não dá para controlar o progresso".
Logo depois, em 2002, veio a seca, que começou como todas as outras. Só que até hoje ela não acabou, e agora a farra da água chegou mesmo ao fim. Embora os fazendeiros que dependiam das chuvas tenham visto suas plantações de milho e trigo virarem planícies poeirentas, eles pelo menos estavam habituados a enfrentar temporadas de aridez. Em contraste, "os que dependiam da irrigação sempre haviam tido água e nunca imaginaram que a torneira seria fechada", comenta o consultor financeiro Don Seward. Enquanto a seca se prolongava, as cotas de água começaram a diminuir: primeiro, 95%. Depois, 50%. Aí, 32%. E agora, no caso de Mick Punturiero, ele tem de se virar com 16%.
"O rio não difere em nada das rodovias, pagas por todos os australianos com seus impostos", argumenta o fazendeiro. "Todos os australianos pagaram pelos diques. Nós pagamos pela barragem Dartmouth, que supostamente iria proteger a Austrália do Sul contra a seca. Então, por que não posso receber toda a minha cota? Tenho direito a ela!" Punturiero também vê como seus colegas, agindo de modo semelhante ao de seu avô, que jamais pensou em poupar um centavo, agora estão à beira da insolvência. Ou de cometer suicídio. Ele próprio às vezes se vê na mesma situação - "encurralado", diz com voz exaurida, "sem nada poder fazer por minha família".
Mas aí a fúria ressurge. A ira é tudo o que por enquanto resta a Mick Punturiero. Ele não vai cair sem lutar - disso ele faz questão.
Para muitos australianos, é difícil reconciliar a versão intermitente e desfigurada do rio Murray com o cintilante idílio da época em que eram jovens. Na foz do rio, um florescente ecossistema há muito vem sendo mantido pelo avanço e pelo recuo naturais da água doce e da água do mar. Mas a retirada de água para irrigação, associada à seca, minguou o fluxo do rio. Por isso, a fim de que o Murray possa chegar ao mar, sua foz precisa ser sempre desobstruída. Sem a dragagem, ocorreria o assoreamento da foz, impedindo o trajeto da água doce até o ecossistema de lagunas conhecido como Coorong e o vizinho lago Alexandrina. É ali, toda manhã, que um pescador de 65 anos e cabeleira prateada navega em um bote de alumínio pelas águas do lago, ou pelo que restou dele. Desde que quase todos os demais pescadores se mudaram para outras áreas, Henry Jones ficou sozinho no lago - não contando os pelicanos, embora na realidade os conte e conclua: agora são apenas um décimo do que ele costumava ver. Mas já não resta nenhum íbis-branco-australiano nem pato-de-bico-azul. Perto da laguna norte do Coorong, Jones recolhe suas redes submersas, mas entre os peixes capturados não se vêem nenhuma perca-prateada nem nenhum bacalhau-do-murray. Foram todos eliminados pela água salgada demais. Somente as carpas sobrevivem. Elas, que nem mesmo existiam nos lagos inferiores um quarto de século atrás e cuja presença assinala o fim do ambiente de água doce, agora são abundantes ali.
Jones conseguiu se adaptar às mudanças de maneira impossível para as espécies em extinção. Encontrou varejistas que compram todas as carpas que ele pesca. Jones mantém ainda estreitas relações com os anciões do povo aborígene ngarrindjeri, cujo domínio de 30 mil anos sobre o rio terminou da noite para o dia quando a expedição liderada pelo capitão Charles Sturt chegou à foz do Murray, em 1830. Para os ngarrindjeri, a seca provocou o desaparecimento dos ovos de cisnes negros, dos mexilhões de água doce e de outros totens sagrados que são essenciais para sua nutrição espiritual e física.
Com isso, Henry Jones tornou-se, na prática, a voz dos mortos e dos agonizantes, entoando um meditado, ainda que pesaroso, monólogo para quem quiser ouvir: "Todos os ecossistemas estão à beira do colapso. Dois terços do Coorong já estão mortos - o teor de salinidade ali é quase tão alto quanto o do mar Morto". O que Jones mais encontra, ao viajar pela região da bacia, é um sentimento de que, seja como for, a responsabilidade por toda a crise da água cabe aos ambientalistas. Os fazendeiros estão indignados com o fato de o rio acabar no mar. Dizem a Jones que faz muito mais sentido desviar o Murray para o interior do país, impondo oficialmente ao rio uma servidão eterna como canal de irrigação - quanto aos pescadores, melhor seria que se conformassem e fossem ganhar a vida no mar aberto. Nas áreas de cultivo de algodão, totalmente dependentes da irrigação, conta Jones, "às vezes tenho sorte de sair vivo de lá".
O Coorong constitui apenas um exemplo do ameaçado ecossistema da bacia Murray-Darling. Cientistas e autoridades foram pegos desprevenidos quando, rio acima, algum invisível limiar de tolerância à seca foi ultrapassado e, de repente, morreram centenas de milhares de eucaliptos-vermelhos - a maior floresta dessa espécie no mundo. E agora surgiu uma nova preocupação: a de que as áreas úmidas estejam produzindo toxinas. Desprovidos de um sistema de circulação de água regular e submersos durante décadas, os pântanos ficaram tão ressecados que a crosta de sedimentos começou a reagir com o ar e formar grandes superfícies de ácido sulfúrico. Os cientistas ainda não avaliaram bem a ameaça para animais e seres humanos. Por enquanto, como nota o economista Mike Young, especializado em questões de água, "é algo em que ninguém teria a coragem de colocar a mão".
Adelaide talvez tenha a duvidosa honra de ser a primeira cidade industrializada do mundo a conviver com uma perene escassez de água. Sua perigosa dependência do rio Murray - que chega a 90% do suprimento nas épocas de pouca chuva - é simbolizada pelos dois enormes e feios dutos que se estendem por mais de 60 quilômetros do rio até os reservatórios da cidade. Desde o início da seca, em 2002, a capital do estado da Austrália do Sul convive com restrições ao consumo de água. Seus moradores já se acostumaram a usar a chuva para manter os jardins. Plantas nativas e gramados artificiais tornaram-se comuns. As prateleiras das lojas de materiais de construção estão repletas de umidificadores de solo, mangueiras para reaproveitamento de água servida, chuveiros com dispositivos de economia, temporizadores para o banho e outros equipamentos para poupar o precioso líquido.
No entanto, toda essa mobilização cívica não serve de substituto para uma solução definitiva do problema. A crise de água no país não será resolvida tornando Adelaide "à prova de seca" - afinal, a despeito de depender tanto do Murray, a cidade responde por apenas 6% das retiradas totais no rio. "A Austrália do Sul está consciente de quão precário é o modo de vida ali", comenta o ambientalista Peter Owen, da Wilderness Society. "Ninguém vai salvar nosso sistema fluvial usando baldes de água servida."
Enquanto isso, fora da bacia Murray-Darling, a seca colocou em evidência graves problemas nos suprimentos de água de Sydney, Melbourne e Brisbane, entre outras áreas urbanas. A dura lição dessa seca prolongada é que apenas entusiasmo já não basta para impulsionar o crescimento do país. "Trabalho com o pressuposto de que vamos enfrentar outros períodos de seca no futuro em consequência das alterações no clima", reconhece Malcolm Turnbull, do Partido Liberal, cujo líder John Howard, cético renitente diante das mudanças climáticas, foi afastado do poder em novembro de 2007. "Um primeiro-ministro prudente deve assumir que o clima vai ficar mais quente e seco. E então se preparar para isso."
Mas o que isso significa na prática? Vai implicar a construção de dispendiosas usinas de dessalinização em Adelaide, Sydney e outras áreas, com a consequente escalada das contas de energia? Será possível desenvolver variedades de plantas resistentes à seca de modo a manter a produção de alimentos? Ou, ainda, restringir a água fornecida aos produtores leiteiros, que usam mil litros dela para cada litro de leite que colocam no mercado? Vão prosseguir as duras condições de trabalho na região do rio Murray? O que se requer é uma paisagem nova e robusta, e cabe à Austrália mostrar ao resto do mundo industrializado como vai ser essa nova paisagem. Para começar, talvez seja uma paisagem reconciliada com suas limitações. A Linha de Goyder é hoje muito mais relevante na medida em que a seca e as mudanças no clima tornam mais urgente a questão da intensidade com que devem ser exploradas as terras agrícolas limítrofes - se é que não deveriam ser abandonadas por completo.
Afinal, a derradeira etapa do processo de lidar com a perda é a aceitação. Em 1962, Frank Whelan recebeu uma cota de água para cultivar arroz, seis anos antes da emancipação da cidadezinha de Coleambally. Até esta seca, ele sempre colheu suas safras. Embora tenha 74 anos, sua memória é tão límpida quanto seus olhos. Mesmo com períodos de seca, oscilações do mercado, disputas com as autoridades e incessantes escaramuças com os ambientalistas, para os quais não faz sentido produzir arroz, cultura que requer enorme quantidade de água, Whelan viu Coleambally prosperar a despeito de todas as adversidades. Ele se lembra de reuniões comunitárias em que as notícias eram animadoras, pois sempre havia água disponível para irrigação.
Agora, a atmosfera é diferente quando Whelan se reúne no boliche local com 200 outros fazendeiros. Durante quatro horas eles ouvem um grupo de especialistas anunciar que, por período indefinido, não vai haver mais cota de água para irrigação em Coleambally. E propor novas atividades econômicas para a região - nenhuma das quais têm a ver com o cultivo de arroz. Alguns fazendeiros não conseguem se conter. Eles culpam os burocratas. Culpam os ambientalistas. Culpam o estado de Nova Gales do Sul. Whelan, no entanto, permanece calado. Fica ali sentado, piscando os olhos claros, de vez em quando esfregando a testa enrugada com uma das mãos, aquela com dois dedos deformados em acidente com uma máquina agrícola.
Whelan sabia que chegariam a esse ponto. Quando começou a seca, ele compactou o solo com trator de modo a minimizar a perda de água e deixou parte de suas terras sem irrigação. Depois ampliou essa área não irrigada. Ao mesmo tempo, ele viu a produção nacional de arroz despencar de mais de 1 milhão de toneladas ao ano para apenas 21 mil toneladas, contribuindo para a escassez de alimentos que assolou o planeta. A Austrália, o celeiro do mundo, precisa repensar seu futuro. Qualquer que seja ele, Whelan sabe que a região arrozeira de Coleambally jamais vai recuperar sua antiga importância. Por isso, quando termina a reunião, outro produtor aproxima-se dele e pergunta: "Bem, o que você acha disso, colega?"
É um beco sem saída. Sem esperança, os habitantes de Coleambally já propuseram a venda de todo o vilarejo e seu suprimento de água ao estado por 2,4 bilhões de dólares. Dias depois, retiraram a oferta, fincando pé na ideia de que a região pode continuar a produzir alimentos.
De fato, essa é uma disputa que ainda não terminou na região de Murray-Darling. Mas há quem tenha chegado, a despeito de toda a relutância, à fase da aceitação. Um ano depois do início desta reportagem, Malcolm Adlington, o produtor de leite, vendeu seu gado - agora ganha a vida dirigindo um micro-ônibus. O plantador Mick Punturiero extirpou metade das árvores de seu pomar e admite que não poderá continuar com o negócio. E, naquela noite em Coleambally, também Frank Whelan tomou uma decisão.
"É o seguinte", respondeu ele ao colega arrozeiro com um sorriso melancólico, "acho que vou para casa e me aposentar."
National Geographic Brasil
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