segunda-feira, 20 de junho de 2022

De Tonga a São Paulo



Pluma da grande erupção vulcânica que ocorreu em janeiro na ilha do Pacífico é observada 27 quilômetros acima da capital paulista


A pluma atmosférica liberada pela erupção do vulcão de Tonga vista da Estação Espacial Internacional

Nasa Earth ObservatoryMarcos Pivetta



À1h56 da madrugada de 26 de janeiro, o radar meteorológico instalado no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) registrou uma concentração de aerossóis, finas partículas em suspensão, cerca de 27 quilômetros (km) acima da cidade de São Paulo. A ocorrência tinha forma similar à de uma linha contínua que riscava a parte de cima da imagem que representava a área de céu observada. Tratava-se de um evento bastante raro, já dentro dos domínios da estratosfera, a segunda camada da atmosfera terrestre, logo após a troposfera, que se inicia entre 16 e 18 km de altitude na capital paulista e vai até 50 km.

Em noites sem chuva e com pouca névoa, como era aquela do verão paulistano, o radar costuma flagrar dois tipos de manchas horizontais no céu. A mais comum, e mais grossa, situa-se entre 3 e 4 km de altitude e representa o acúmulo da poluição atmosférica produzida por carros, indústrias e demais atividades da metrópole. A outra, menos densa e nem sempre presente, forma-se por volta dos 10 km de altitude e indica a existência de nuvens do tipo cirrus, constituídas por vapor-d’água supersaturado e cristais microscópicos de gelo. A única explicação plausível para um registro tão chamativo de aerossóis acima dos 20 km de altitude naquela madrugada era de que as cinzas de uma grande erupção vulcânica recente tinham alcançado a estratosfera.

“A última vez que tínhamos visto algo parecido foi em 2015, quando o vulcão chileno Calbuco entrou em atividade. Mas sua pluma de aerossóis atingiu no máximo 17 km de altitude”, conta o físico Eduardo Landulfo, coordenador do Laboratório de Aplicações Ambientais de Laser do Ipen, que gerencia o uso do radar. “Não esperávamos que o radar tivesse capacidade técnica para registrar aerossóis até quase 30 km de altitude.” Landulfo é um dos principais pesquisadores de um projeto financiado pela FAPESP que estuda a qualidade do ar na Região Metropolitana de São Paulo.


A erupção do vulcão de TongaCSU / CIRA e JAXA / JMA

A inusual concentração de partículas suspensas observada pelo radar era resultado da grande erupção de 15 de janeiro do vulcão submerso encravado na ilhota de Hunga Tonga-Hunga Haʻapai, situada 65 quilômetros ao norte da principal ilha do arquipélago de Tonga, no sul do Pacífico. A atividade da caldeira foi tão intensa que o território de Hunga Tonga-Hunga Haʻapai se partiu em dois. Logo após o cataclismo, pesquisadores de países do hemisfério Sul, como Austrália e Nova Zelândia, começaram a acompanhar a pluma por meio de radares, satélites e outros instrumentos.

A forte explosão vulcânica em Tonga provocou um tsunami com ondas de até 15 metros de altura que atingiu as ilhas do arquipélago, onde vivem 100 mil habitantes. Pelo menos seis pessoas morreram e milhares foram desabrigadas. O barulho da erupção foi ouvido a quase 2 mil quilômetros de distância, na Nova Zelândia. Uma gigantesca pluma de cinzas decorrentes da atividade vulcânica, que se prolongou por 11 horas, cobriu Tonga. Ela é formada basicamente por gases à base de enxofre, vapor-d’água e dióxido de carbono.

Em meados de fevereiro, pesquisadores da Nasa, agência espacial norte-americana, fizeram uma análise preliminar de dados de dois satélites meteorológicos geoestacionários, o Goes-17 e o Himawari-8, e concluíram que a pluma vulcânica do Hunga Tonga-Hunga Haʻapai (o vulcão é chamado com o nome da ilhota) atingiu a maior altitude já registrada por esse tipo de fenômeno. Trinta minutos após a explosão da caldeira, essa mistura de gás, vapor e cinzas expelida pelo monte submerso no Pacífico Sul chegou a 58 km de altitude. A pluma penetrou na mesosfera, a terceira camada da atmosfera, que se estende aproximadamente entre 50 e 100 km de altitude. “A intensidade desse evento excede em muito a de qualquer nuvem de tempestade que já estudei”, comentou o cientista do clima Kristopher Bedka, do Centro de Pesquisa Langley da Nasa, em comunicado à imprensa. O recorde anterior pertencia à pluma da erupção do vulcão Pinatubo, nas Filipinas, em 1991, que tinha alcançado 35 km de altitude.


Satélite captou a evolução da erupção submarina e a liberação da pluma vulcânicaNasa Earth Observatory

Erupções vulcânicas tão potentes a ponto de conseguir impulsionar seu rastro de fumaça até a estratosfera podem alterar temporariamente o clima global, mais especificamente reduzir a temperatura média do planeta por meses. Os aerossóis bloqueiam a chegada à Terra de parte da luz solar e esfriam o ambiente (ver Pesquisa FAPESP nº 308). Daí o interesse que esses eventos extremos provocam em pesquisadores das ciências atmosféricas, além, claro, dos próprios geólogos e vulcanólogos. “Os aerossóis do Pinatubo resfriaram a temperatura do planeta em cerca de 0,6 °C por quase dois anos”, diz a física Márcia Akemi Yamasoe, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP). “Mas ainda é cedo para prevermos se a erupção de Tonga vai ter algum impacto semelhante no clima global.”

Diferentemente do que ocorre na troposfera, a primeira camada da atmosfera, não há nuvens de chuva na estratosfera ou na mesosfera. Essa característica dificulta e torna mais lenta a dispersão dos poluentes nas altas camadas da atmosfera, como ocorreu até agora com a pluma do vulcão de Tonga. “Os aerossóis podem ficar circulando por meses e até anos em torno do globo terrestre”, diz Landulfo.

O radar meteorológico do Ipen emprega a tecnologia de LiDAR, um método de sensoriamento remoto que usa o laser para medir a localização de objetos em relação à superfície terrestre. Como a velocidade da luz é conhecida (cerca de 300 mil km por segundo), o tempo necessário para que um feixe de laser seja emitido, refletido por uma camada de aerossóis e volte para sua fonte fornece a distância exata dessa nuvem de partículas em suspensão.


Radar meteorológico do Ipen mostra a pluma vulcânica da erupção do vulcão de Tonga 27 km de altitude sobre São Paulo (linha esverdeada no alto da imagem)Fábio Juliano da Silva Lopes / Ipen

O equipamento do Ipen é programado para registrar especificamente a presença de aerossóis que variam de poucos nanômetros a alguns micrômetros, como poluição urbana, fumaça de queimadas, vapor-d´água e grãos de poeira. Ele é prioritariamente usado para estudar a qualidade do ar e o clima na região metropolitana da capital paulista e faz parte da Latin American LiDAR Network (Lalinet).

“Desde que identificamos a pluma da erupção do vulcão de Tonga pela primeira vez, temos seguido sua movimentação com o radar sempre que as condições de observação noturna são boas”, diz o físico Fábio Juliano da Silva Lopes, que faz estágio de pós-doutorado no grupo de Landulfo no Ipen. Em certos dias, os pesquisadores do instituto viram que a pluma, na verdade, divide-se em três segmentos situados em altitudes diferentes, por volta dos 22, 25 e 27 km.

Dados preliminares de registros internacionais indicam que a erupção do monte submarino de Tonga atingiu provavelmente o nível 5 do Índice de Explosividade Vulcânica (VEI), uma escala logarítmica que vai de 0 a 8, do nível mais fraco ao mais forte. O número reflete uma classificação relativa da potência desse tipo de evento, similar à fornecida pela mais conhecida escala Richter, que dimensiona a magnitude de terremotos. Desde a erupção de 1991 do Pinatubo, que chegou ao nível 6 no VEI, não havia registro de uma explosão vulcânica tão potente, como a ocorrida no início do ano nos arredores do arquipélago do Pacífico Sul.


O arquipélago de Tonga fica no Pacífico Sul (ver globo). A erupção fez submergir quase toda a ilhota de Hunga Tonga-Hunga Ha‘apai, da qual restaram duas pequenas pontas em lados opostosNasa Earth Observatory

Vulcões em águas profundas raramente provocam grandes erupções que conseguem vencer a resistência do mar que os cobre. Normalmente, a presença do oceano represa substancialmente sua força explosiva. “Mas a erupção de Tonga foi tão intensa que compensou o fato de ter ocorrido debaixo d’água. É a primeira vez que um evento tão específico como esse do Pacífico Sul é observado por satélites, radares de LiDAR e outros instrumentos de sensoriamento remoto, todos desenvolvidos na segunda metade do século XX”, diz o físico cubano Juan Carlos Antuña-Marrero, da Universidade de Valladolid, na Espanha, especialista no estudo de aerossóis, em entrevista a Pesquisa FAPESP.

A base da ilhota de Hunga Tonga-Hunga Haʻapai se situa a 2 mil metros de profundidade, no assoalho do oceano, e faz parte do arco de Tonga-Kermadec, sujeito a terremotos e formado por uma cadeia de vulcões submarinos. Mas a boca do vulcão que entrou em atividade intensa em 15 de janeiro se encontrava apenas entre algumas dezenas e 250 metros debaixo d’água. Ou seja, raso o suficiente para que o oceano não suprimisse toda a força da erupção, mas profundo o bastante para que o magma expelido deparasse com um ingrediente explosivo. A lava aquece rapidamente a água que se transforma em vapor, gás que se expande de forma acelerada. Essa peculiaridade talvez explique a altura elevada que a pluma da erupção atingiu.

Apesar de não ter sido tão potente quanto a erupção do Pinatubo, a explosão do vulcão de Tonga tem produzido dados surpreendentes em menos de um mês de estudos. Nas horas seguintes ao evento no Pacífico, o satélite Aqua, da Nasa, observou a produção de ondas de choque, círculos concêntricos, que percorreram várias vezes a atmosfera de todo o globo terrestre. As ondas se iniciavam na superfície do oceano e atingiam até a ionosfera, a mais de 100 km de altitude.

Nas próximas semanas, Landulfo, Antuña-Marrero e outros pesquisadores do Brasil e do exterior devem realizar estudos conjuntos para tentar entender as características da pluma do vulcão de Tonga e seus possíveis impactos climáticos. O pesquisador do Ipen está em negociações com colegas da Nasa para soltar balões meteorológicos que podem chegar até a altura da pluma para realizar medições in loco. Isso já foi feito nas ilhas Reunião, no oceano Índico, de onde também se avista o rastro de fumaça da erupção de Tonga na troposfera. Até o fechamento desta reportagem, o radar do Ipen ainda registrava a pluma vulcânica cerca de 30 km acima da cidade de São Paulo.

Projeto
Área metropolitana de São Paulo: Abordagem integrada mudanças climáticas e qualidade do ar, Metroclima Masp (nº 16/18438-0); Modalidade Projeto Temático; Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG); Pesquisadora responsável Maria de Fátima Andrade (USP); Investimento R$ 5.763.389,75.
Revista Fapesp

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