ANDRÉ CAMPOS
Arte PB
Em 1888, um filho de imigrantes alemães inaugurava a primeira fábrica de calçados genuinamente brasileira, no vale do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul, território hoje integrante da região metropolitana de Porto Alegre. Ao empreendimento fundado por Pedro Adams Filho seguiram-se outros e depois mais outros, expansão industrial que, ao longo dos anos, consolidou o lugar como o terceiro centro produtor de calçados do planeta. Para além das terras gaúchas, nos 125 anos que separam a investida pioneira de Adams dos dias atuais, fábricas do setor foram se instalando também em outras regiões brasileiras, tornando-o um segmento estratégico da indústria nacional. Em 2011, de acordo com um relatório publicado pelo Instituto de Estudos e Marketing Industrial (Iemi), em torno de 3,3% da mão de obra fabril do país estava empregada no ramo, o equivalente a 337,5 mil pessoas. É um exército de trabalhadores que se espalha por diversos polos calçadistas, integrado, além dos sulistas, por fabricantes mineiros, nordestinos e paulistas.
Se um dia esse segmento navegou em águas calmas, que favoreceram sua expansão, de uns tempos para cá, entretanto, vem enfrentando ondas gigantes, representadas, especialmente, pela concorrência internacional. Os números tornam bem claro por que o cenário dos últimos anos é motivo de preocupação entre os fabricantes brasileiros: as exportações de calçados, que em 2004 atingiram a marca máxima de 212,5 milhões de pares, cravaram em 113 milhões em 2012, uma queda de quase 50%.
Já no mercado interno, o produto made in Brazil viu crescer a feroz concorrência dos asiáticos, focada não só na entrada de tênis, sapatos e sandálias prontos, mas também na importação de partes e peças – como a sola, o cabedal (parte superior do calçado) etc. –, que, entre 2008 e 2012, avançou de US$ 12,4 milhões para US$ 76,5 milhões. É uma realidade que ameaça a sobrevivência de pequenos e médios fornecedores locais presentes na base da cadeia produtiva. Tal conjuntura, como era de se esperar, afetou o nível de emprego das indústrias. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, em 2012, houve uma queda de 6,2% no quadro funcional do setor, percentual que só não foi mais feio que o amargado pelas indústrias madeireiras e de vestuário.
“A situação está complicada”, diz Heitor Klein, diretor executivo da Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados). O alerta já chegou a Brasília e motivou, nos últimos dois anos, o anúncio de uma série de medidas com vistas a restaurar a competitividade do produto brasileiro. Apesar disso, as más notícias sobre o desempenho desse importante ramo industrial continuam a brotar. Resultados referentes ao primeiro bimestre de 2013 mostram as exportações de calçados em queda livre e as importações a pleno vapor. É um cenário cuja reversão, segundo representantes do setor ouvidos por Problemas Brasileiros, passa por amplas reformas estruturais ainda distantes de se tornar realidade.
Ironicamente, é o bom momento do mercado interno que ajuda a explicar a invasão do calçado estrangeiro. “Com a crise internacional, os exportadores asiáticos direcionam para cá o excedente de sua oferta”, explica o diretor executivo da Abicalçados. Mesmo antes da crise, durante toda a década passada, a China já havia expandido enormemente sua atuação no mercado brasileiro – de 2000 a 2009, as importações oriundas daquele país saltaram de 3,2 milhões para 22,6 milhões de pares. Esse crescimento chamou a atenção do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), que, em 2008, abriu uma investigação focada nos exportadores daquele país, então sob suspeita de praticar preços artificiais – ou seja, abaixo do custo de produção – com o claro objetivo de alargar espaços no varejo nacional. O resultado foi a aprovação, em 2010, de uma alíquota antidumping sobre o calçado chinês, de US$ 13,85 por par.
Imposição de barreiras
A queda nas importações do gigante asiático, contudo, foi seguida pelo crescimento das compras em outros países asiáticos, como o Vietnã e a Indonésia. Suspeitas de práticas criminosas de triangulação no comércio internacional indicavam que o sapato chinês poderia estar entrando no Brasil como se tivesse sido fabricado em outro país da Ásia. Em 2012, o Brasil chegou a barrar a entrada de calçados da Malásia por falsa declaração de origem, o que levou à imposição de novas exigências aos exportadores daquele país. Na visão de fabricantes brasileiros, o episódio pode ser apenas a ponta de um grande iceberg. Segundo o presidente do Sindicato da Indústria de Calçados de Franca (Sindifranca), José Carlos Brigagão do Couto, ainda é preciso avançar muito na identificação desses casos. “É notório que falta preparo ao corpo técnico do governo para atuar com maior agilidade”, afirma.
No ano passado, uma resolução do MDIC aprovou outra sobretaxa sobre o calçado importado da China, agora mirando a compra de cabedais e solas. A medida foi tomada após a conclusão de que, em certas situações, esses itens estavam sendo importados para mera montagem no Brasil, burlando, assim, a alíquota antidumping aprovada dois anos antes. A resolução, no entanto, criou uma lista de 95 empresas que operavam liberadas para comprar o produto importado sem a incidência da taxa – e que, de acordo com a Abicalçados, correspondiam quase que à totalidade dos importadores. Tal situação gerou uma queixa formal da entidade, por criar vantagens para os usuais importadores. O resultado foi a revogação da resolução – e, consequentemente, da sobretaxa – poucos meses depois, retornando tudo a como era antes. “Ou seja, o problema da circunvenção [importação de calçados desmontados para mera montagem no Brasil] permanece”, queixa-se Klein, da Abicalçados.
Reforçar a defesa comercial e a fiscalização sobre os calçados importados é um dos compromissos assumidos por Brasília no âmbito do Plano Brasil Maior, carro-chefe da política industrial do governo Dilma Rousseff. Lançado em agosto de 2011, ele coloca a indústria calçadista entre suas prioridades. O segmento foi um dos agraciados por medidas de desoneração da folha de pagamentos – redução a zero da alíquota de 20% para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) –, destinadas a fortalecer setores intensivos em mão de obra, sensíveis ao câmbio e à concorrência internacional. O estabelecimento de uma margem de preferência de 8% nas compras estatais de calçados foi outra iniciativa anunciada pelo plano governamental. A diminuição da tarifa de energia elétrica, sancionada pelo Planalto em janeiro de 2013, também recebeu incisivo apoio do setor. Em dezembro de 2012, o Sindifranca havia enviado um ofício ao Congresso Nacional defendendo a aprovação de medida provisória para estabelecer o corte. “Haverá redução no custo de produção e, consequentemente, aumento da competitividade brasileira”, argumentava o comunicado.
Apesar dos avanços pontuais, o setor pede reformas mais amplas. A pauta de reivindicações faz coro às de outros setores da indústria, e inclui prioridades como investimentos em infraestrutura, desburocratização e simplificação das leis trabalhistas e tributárias. “Estima-se que no Brasil as empresas gastem 2,6 mil horas por ano apenas para pagar impostos”, exemplifica William Marcelo Nicolau, presidente da Associação Brasileira de Empresas de Componentes para Couro, Calçados e Artefatos (Assintecal). “Na Bolívia, para se ter uma ideia do tamanho do contrassenso, as empresas gastam menos da metade disso.”
A guerra fiscal entre os estados e municípios, que também afeta o segmento calçadista, é um exemplo de obstáculo que precisa ser removido. Em 2010, Minas Gerais aprovou uma redução de 12% para 3% no Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) pago pelas indústrias do setor. Isso motivou medidas semelhantes em outros estados, como São Paulo e Santa Catarina, e muitas reivindicações no Rio Grande do Sul para que o governo local fizesse o mesmo. Brasília tem procurado articular uma proposta para a unificação interestadual da alíquota do ICMS em 4% – intenção que esbarra em resistências principalmente de governadores do centro-oeste, nordeste e norte.
Design e inovação
Além de reformas estruturais, o segmento calçadista também cobra mais eficiência na aplicação de políticas já estabelecidas para beneficiar a indústria. Um exemplo é o Reintegra, outra medida do Plano Brasil Maior, cujo objetivo é desonerar tributos indiretos que incidem sobre os produtos industrializados exportados. Em 2012, segundo o governo federal, ele representou uma renúncia fiscal de aproximadamente R$ 1,5 bilhão. De acordo com Couto, do Sindifranca, a indústria calçadista enfrenta dificuldades para acessar os recursos do Reintegra. Ele se queixa da burocracia imposta para a liberação desses créditos fiscais. “Há casos de empresas que estão aguardando há mais de um ano para receber valores que superam R$ 600 mil”, diz.
Não bastassem os problemas no plano interno, o front externo também tem rendido dores de cabeça aos fabricantes brasileiros de calçados. Além da feroz concorrência imposta pelo produto similar asiático, há outros focos de preocupação que partem, por exemplo, da Argentina e de Portugal. Os argentinos ocupam lugar de destaque nos negócios internacionais do setor, mas são especialistas em criar embaraços do tipo denunciado em 2011 pela Abicalçados, quando mais de 3 milhões de pares made in Brazil aguardaram a emissão de licenças de importação por prazos superiores aos permitidos pela Organização Mundial do Comércio (OMC). A Venezuela, segundo a entidade, é outro mercado que impõe dificuldades do gênero. “Já os portugueses estão reativando sua indústria e, por extensão, reduzindo o número de pedidos encaminhado ao polo calçadista de Franca, no interior de São Paulo”, relata Couto.
Diante de tantas barreiras, o setor busca encontrar alternativas capazes de reposicioná-lo no disputado mercado mundial. Investir em marcas próprias e em modelos de maior valor agregado pode ser uma saída para ganhar consumidores e, assim, fugir da competição com os asiáticos. A ideia conta, inclusive, com o apoio técnico e financeiro federal da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil), entidade voltada à divulgação do produto nacional, consolidação de novos mercados e promoção da “marca Brasil”.
Para viabilizar essa estratégia, segundo a economista Ana Cristina Costa, chefe do Departamento de Bens de Consumo, Comércio e Serviços da Área Industrial do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), será preciso lançar mão de mais investimentos na qualidade dos insumos, em design e em inovação. Ou seja, é essencial mudar o foco da fabricação “por encomenda” para o da “concepção de produto”. “Já existem empresas que fazem isso, mas permanece o desafio de espalhar a ideia para todo o setor”, observa.
O sucesso das sandálias Havaianas, da Alpargatas, no mercado mundial é um exemplo clássico da mudança de rota que se espera da indústria de calçados. Criada em 1962, com apelo notadamente popular, o produto passou por uma reformulação de design e imagem, convertendo-se em ícone fashion a partir dos anos 2000. Hoje, é exportada para mais de 80 países e já foi vista nos pés de celebridades de Hollywood e de gente graúda do jet set internacional.
Trabalho infantil
Em setembro do ano passado, foi a vez da Schutz – marca de calçados femininos da companhia Arezzo – apostar alto na internacionalização, por meio da abertura de uma loja própria em Nova York. O objetivo da companhia é ofertar sapatos de qualidade e design luxuoso num patamar de preço mais acessível que o do produto europeu. Na Arezzo, segundo a própria companhia, os investimentos em desenvolvimento de novos calçados envolvem a criação anual de 11,5 mil modelos, dos quais cerca de 3 mil chegam às lojas após um processo interno de seleção.
Na opinião de Ana Cristina, a Copa do Mundo e as Olimpíadas no Brasil, em 2014 e 2016, respectivamente, representam uma valiosa oportunidade para o setor. “Esses eventos abrem a possibilidade do fortalecimento de marcas nacionais, especialmente na área de artigos esportivos”, sugere a economista.
A imagem do calçado brasileiro no exterior, apesar dos avanços recentes, ainda não conseguiu se livrar de todo da associação a algo completamente oposto aos almejados conceitos de modernidade e inovação: a utilização de mão de obra infantil. Em 2009, o Departamento do Trabalho dos Estados Unidos divulgou uma lista global de produtos em cuja fabricação ela estava presente, incluindo nessa relação, além de outros 11 segmentos da economia brasileira, a indústria de calçados. “Não tem sentido dizer que fazemos uso dessa prática por conta de um problema que se restringe a poucos estabelecimentos de caráter familiar”, alega Klein. Em 2003, um relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) já apontava grandes avanços no enfrentamento do problema, com destaque para ações de conscientização e mobilização social em Franca e no vale do Rio dos Sinos. “Os êxitos alcançados são muitos e podem ser facilmente enumerados”, atestou à época a OIT.
O emprego de mão de obra infantil na cadeia produtiva de calçados remete às chamadas “bancas de pesponto”, empreendimentos muitas vezes domiciliares dedicados às atividades de costura para as indústrias. Esses ateliês terceirizados, segundo o secretário-geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias do Setor Têxtil, Vestuário, Couro e Calçados (Conaccovest), Rogério Aquino, apresentam problemas que vão da informalidade à falta de segurança, passando por jornadas abusivas de trabalho. “A condição dessas pessoas é muito degradante”, diz. “Esse tipo de terceirização precisa ser combatido.” Como acontece em outras cadeias produtivas, na da indústria do calçado pairam muitas incertezas sobre as atividades em que a terceirização pode ou não ser considerada legal – e também sobre quem deve recair a responsabilidade quando são identificadas irregularidades trabalhistas. “O Congresso precisa estabelecer legislação específica sobre o assunto”, alerta o Sindifranca.
A gestão dos resíduos é outro tema candente relacionado a essa indústria. Elias Antônio Vieira, pesquisador do Laboratório de Estudos Sociais do Desenvolvimento e Sustentabilidade, da Universidade Estadual Paulista (LabDES/Unesp), aponta a existência de diferenças regionais significativas em relação à preocupação com o tema. De qualquer forma, segundo ele, todos os polos calçadistas do país ainda possuem, em maior ou menor grau, empreendimentos fabris que destinam os resíduos de forma inadequada. De acordo com Vieira, é preciso ir além do que determina a lei. “A destinação em aterros sanitários, mesmo que bem manejados, está totalmente defasada em termos tecnológicos”, diz o pesquisador. “Precisamos promover a reutilização e a reciclagem.” O uso de resíduos como matéria-prima na construção civil é apenas um exemplo das diferentes possibilidades, nesse contexto. O Programa Origem Sustentável, lançado em janeiro de 2013, é uma iniciativa que busca enfrentar esses e outros gargalos socioambientais do setor. Desenvolvido por entidades empresariais calçadistas em parceria com universidades do Brasil e do exterior, ele certifica empresas com boas práticas de produção nas esferas econômica, social, cultural e ambiental. O selo foi concedido, até agora, a 12 indústrias. Já é um bom começo.
Revista Problemas Brasileiros
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