A Queda
por Antônio Lassance
10/11/2009
A queda do Muro de Berlim (1989) é um evento repleto de significados. O historiador Eric Hobsbawm o utiliza para delimitar o fim do século XX. Em termos geopolíticos, ou especificamente militares, ele demarca o fim da Guerra Fria. Para os Alemães, é o fim da divisão de seu país em dois e o início da unificação. Para os socialistas, foi a desintegração do monólito (conforme Boris Kagarlitsky denominou a derrocada do sistema soviético) e o emblema da ofensiva neoliberal que varreu o mundo nos anos 90 e tentou reduzir a pó as políticas de bem-estar social. Para os liberais mais teóricos, a queda significou a vitória final (sic) do capitalismo (a exemplo de Fukuyama e seu fim da História). Para os liberais mais pragmáticos, foi um evento “pop” e seus 20 anos merecem uma comemoração que lhes dê a oportunidade de faturar com shows de rock, visitas de celebridades e garrafas de champanhe.
O Muro nasceu com um sério problema. Muros são feitos em geral para evitar que pessoas entrem, e não que elas saiam. Muitos foram erigidos contra aqueles que já foram chamadas de “bárbaros”, “inimigos” e, hoje, são denominados simplesmente “estrangeiros”. Tal é a diferença entre uma fortaleza e uma prisão. O Muro de Berlim tinha a curiosa missão de aprisionar os alemães orientais em seu próprio País. Ele estava mais para uma Bastilha do que para uma Muralha da China.
O Muro caiu feito um castelo de cartas. Em 9 de novembro de 1989, um velho dirigente do governo da Alemanha Oriental, Günter Schabowski, concedeu uma coletiva para anunciar a decisão tomada pelo Conselho de Ministros de suspender as restrições para os que quisessem viajar para o lado Ocidental. Decisão tomada, milhares de alemães se interessaram prontamente em cumpri-la. O “sem restrições” só tinha um pequeno detalhe a ser contornado: o Muro. Os guardas que tinham cumprido, durante décadas, a ordem de reprimir os que quisessem transpô-lo, viram-se emparedados a não contrariar o anúncio. Vinha abaixo um símbolo.
Como explicar tal fragilidade? Na verdade, o Muro vinha sendo solapado ao longo de muitos anos. Seu terreno estava minado antes mesmo de sua construção. O monólito soviético já iniciara sua desintegração quando a Iuguslávia de Tito e a China de Mao se afastaram da condição de países satélites da União Soviética. Se aprofundou quando ficou clara a cisão do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) promovida por Kruchev, que resultou na execração de Stálin, durante o XX Congresso do Partido.
O Muro caiu mais um pouco em 1979, ano da ofensiva no Afeganistão, que se transformaria num Vietnã para os soviéticos. Coincidentemente, foi também em 1979 quando Mikhail Gorbachev foi alçado ao Politburo, sob a proteção de Iuri Andropov. Adropov se tornaria, de 1982 a 1984, chefe do Estado soviético (formalmente, o cargo era o de Secretário-Geral do PCUS) e transformaria Gorbachev em seu herdeiro político.
A queda representa o fim de uma geografia acostumada a dividir o planeta em Primeiro, Segundo e Terceiro Mundos. Teria lugar um processo de formação de blocos econômicos e o surgimento de um pólo dinâmico do capitalismo que muitos consideram como sinal de um novo ciclo hegemônico (asiático, capitaneado pela China). O risco de destruição por um conflito entre as grandes potências foi mitigado, como claramente se viu na estratégia russa de sugerir a reorientação da OTAN (a antiga aliança militar ocidental montada contra o “perigo vermelho”) para uma rede de países interessados em combater o terrorismo.
O mundo é outro, desde que o Muro desapareceu. Isso não significa que seus dilemas e riscos sejam menores do que os do passado. Que o digam a queda das torres gêmeas e o ataque ao Pentágono, no 11 de setembro de 2001, a proliferação de redes terroristas (a Al-Qaeda é apenas uma delas), a ameaça nuclear latente e as crises econômicas sistêmicas, como a que abalou os mercados recentemente. Mas o fato do muro que dividia as Alemanhas ter sido derrubado tem um grande feito positivo: permitir que, daqui pra frente, se dê mais atenção aos muros que são feitos para tratar pessoas como bárbaros e inimigos. Esses também merecem ser derrubados um a um.
Antônio Lassance é Pesquisador do IPEA, doutorando em Ciência Política pela Universidade de Brasília – UnB (lassance@unb.br).
Meridiano 47
10/11/2009
A queda do Muro de Berlim (1989) é um evento repleto de significados. O historiador Eric Hobsbawm o utiliza para delimitar o fim do século XX. Em termos geopolíticos, ou especificamente militares, ele demarca o fim da Guerra Fria. Para os Alemães, é o fim da divisão de seu país em dois e o início da unificação. Para os socialistas, foi a desintegração do monólito (conforme Boris Kagarlitsky denominou a derrocada do sistema soviético) e o emblema da ofensiva neoliberal que varreu o mundo nos anos 90 e tentou reduzir a pó as políticas de bem-estar social. Para os liberais mais teóricos, a queda significou a vitória final (sic) do capitalismo (a exemplo de Fukuyama e seu fim da História). Para os liberais mais pragmáticos, foi um evento “pop” e seus 20 anos merecem uma comemoração que lhes dê a oportunidade de faturar com shows de rock, visitas de celebridades e garrafas de champanhe.
O Muro nasceu com um sério problema. Muros são feitos em geral para evitar que pessoas entrem, e não que elas saiam. Muitos foram erigidos contra aqueles que já foram chamadas de “bárbaros”, “inimigos” e, hoje, são denominados simplesmente “estrangeiros”. Tal é a diferença entre uma fortaleza e uma prisão. O Muro de Berlim tinha a curiosa missão de aprisionar os alemães orientais em seu próprio País. Ele estava mais para uma Bastilha do que para uma Muralha da China.
O Muro caiu feito um castelo de cartas. Em 9 de novembro de 1989, um velho dirigente do governo da Alemanha Oriental, Günter Schabowski, concedeu uma coletiva para anunciar a decisão tomada pelo Conselho de Ministros de suspender as restrições para os que quisessem viajar para o lado Ocidental. Decisão tomada, milhares de alemães se interessaram prontamente em cumpri-la. O “sem restrições” só tinha um pequeno detalhe a ser contornado: o Muro. Os guardas que tinham cumprido, durante décadas, a ordem de reprimir os que quisessem transpô-lo, viram-se emparedados a não contrariar o anúncio. Vinha abaixo um símbolo.
Como explicar tal fragilidade? Na verdade, o Muro vinha sendo solapado ao longo de muitos anos. Seu terreno estava minado antes mesmo de sua construção. O monólito soviético já iniciara sua desintegração quando a Iuguslávia de Tito e a China de Mao se afastaram da condição de países satélites da União Soviética. Se aprofundou quando ficou clara a cisão do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) promovida por Kruchev, que resultou na execração de Stálin, durante o XX Congresso do Partido.
O Muro caiu mais um pouco em 1979, ano da ofensiva no Afeganistão, que se transformaria num Vietnã para os soviéticos. Coincidentemente, foi também em 1979 quando Mikhail Gorbachev foi alçado ao Politburo, sob a proteção de Iuri Andropov. Adropov se tornaria, de 1982 a 1984, chefe do Estado soviético (formalmente, o cargo era o de Secretário-Geral do PCUS) e transformaria Gorbachev em seu herdeiro político.
A queda representa o fim de uma geografia acostumada a dividir o planeta em Primeiro, Segundo e Terceiro Mundos. Teria lugar um processo de formação de blocos econômicos e o surgimento de um pólo dinâmico do capitalismo que muitos consideram como sinal de um novo ciclo hegemônico (asiático, capitaneado pela China). O risco de destruição por um conflito entre as grandes potências foi mitigado, como claramente se viu na estratégia russa de sugerir a reorientação da OTAN (a antiga aliança militar ocidental montada contra o “perigo vermelho”) para uma rede de países interessados em combater o terrorismo.
O mundo é outro, desde que o Muro desapareceu. Isso não significa que seus dilemas e riscos sejam menores do que os do passado. Que o digam a queda das torres gêmeas e o ataque ao Pentágono, no 11 de setembro de 2001, a proliferação de redes terroristas (a Al-Qaeda é apenas uma delas), a ameaça nuclear latente e as crises econômicas sistêmicas, como a que abalou os mercados recentemente. Mas o fato do muro que dividia as Alemanhas ter sido derrubado tem um grande feito positivo: permitir que, daqui pra frente, se dê mais atenção aos muros que são feitos para tratar pessoas como bárbaros e inimigos. Esses também merecem ser derrubados um a um.
Antônio Lassance é Pesquisador do IPEA, doutorando em Ciência Política pela Universidade de Brasília – UnB (lassance@unb.br).
Meridiano 47
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