A floresta em pé vale mais
País discute novo mecanismo destinado a financiar a preservação da Amazônia
CEZAR MARTINS
Com mais de 45% de sua energia gerada a partir do aproveitamento de fontes renováveis e pouco poluentes, em especial os rios que movimentam as turbinas das usinas hidrelétricas, o Brasil tinha potencial de sobra para sair com a imagem de mocinho da polêmica que cobra dos países de grande economia os maiores investimentos para combater o aquecimento global. Porém, devido principalmente à incapacidade de conter o desmatamento na Amazônia, ocupamos uma das posições mais destacadas no ranking que aponta os responsáveis pelas emissões de gases causadores do efeito estufa, junto com China, Estados Unidos e outros “vilões”. A liberação de dióxido de carbono (CO2) causada pelas queimadas e pela derrubada de árvores da maior floresta tropical do mundo é tão grande que situa a nação na quarta posição da lista negra dos poluidores, colocando o governo em xeque na discussão sobre um novo mecanismo que promete financiar a preservação de áreas florestais nativas, o Redd. A sigla se originou de uma expressão em inglês, mas também é adequada para a correspondente, na língua portuguesa: Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação.
Durante a fase de crescimento, as árvores retiram carbono da atmosfera e o absorvem em seus galhos, raízes e tronco, um processo natural que contribui para manter a temperatura do planeta estável. Por causa dessa capacidade, algumas indústrias deixaram de usar óleo diesel e passaram a plantar eucaliptos para alimentar as caldeiras térmicas que geram energia para as máquinas. A vantagem nesse caso é que os gases liberados na queima foram absorvidos anteriormente no plantio, compensando as emissões decorrentes da produção. Segundo a teoria do Redd, ao preservar a floresta nativa em vez de vender a madeira ou queimá-la para fazer pastagens ou lavouras, um proprietário de terras ou uma comunidade local contribui para impedir que o carbono sequestrado pelas árvores seja liberado, e deve, assim, ser recompensado em dinheiro pelo esforço. A conta ficaria a cargo dos países ricos e industrializados que assinaram em 2005 o Protocolo de Kyoto, acordo internacional em que se comprometeram a reduzir em 5%, até 2012, suas emissões em relação ao início da década de 1990. Em troca desse pagamento, receberiam créditos de carbono, certificados que, por comprovar o investimento em projetos de combate às mudanças climáticas nas nações emergentes, podem ser contabilizados para atingir as metas. Esse mercado de créditos é polêmico – há até quem o chame de “permissão para poluir” –, mas já é realidade e ostenta cifras consideráveis. Só no ano passado movimentou mais de US$ 120 bilhões, segundo relatório do Banco Mundial. Depois de 2012, quando os Estados Unidos (que não são signatários do Protocolo de Kyoto) também devem assumir metas de redução, estima-se que o volume negociado aumente bastante.
Para diminuir as emissões, o governo dos países que participam do Protocolo obriga suas indústrias a adotar tecnologias menos poluentes e baixar o consumo de energia, entre outras ações. Quando as companhias não conseguem alcançar os resultados exigidos, porque o custo é muito alto ou os equipamentos necessários ainda não funcionam adequadamente, têm a opção de comprar os créditos de projetos chamados de mecanismos de desenvolvimento limpo (MDL). São obras como centrais hidrelétricas que substituem termelétricas movidas a carvão ou óleo diesel, adequação de aterros sanitários para capturar o gás metano, 21 vezes mais nocivo que o CO2, reflorestamento de áreas degradadas e outros tipos de iniciativa em países em desenvolvimento, que se industrializaram tardiamente e, por um princípio de responsabilidade diferenciada, ainda não são obrigados a reduzir suas emissões. Nessa situação estão Brasil, China e Índia, apesar de todos os anos mandarem para a atmosfera quantidades significativas de carbono.
Toda essa operação de compra e venda precisa ser aprovada e verificada pela Organização das Nações Unidas (ONU). Até agora, o desmatamento evitado não é considerado uma forma de MDL, mas existe uma grande pressão para que isso seja modificado. A mudança poderia ocorrer na 15ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro da ONU sobre Mudanças Climáticas, encontro entre os principais líderes políticos que será realizado a partir de 7 de dezembro em Copenhague (Dinamarca) e cujo objetivo é construir um novo acordo, que substituirá o de Kyoto depois de 2012. O debate sobre as florestas nativas, junto com a necessidade de impor metas de redução aos emergentes, é apontado por muitos especialistas como o grande entrave nas negociações.
A posição oficial do governo brasileiro, até agora, é contrária à inclusão do Redd nas regras atuais do MDL ou no próximo compromisso. Existem opiniões divergentes em vários ministérios, mas o que os representantes do Itamaraty alegaram nas reuniões internacionais feitas durante o ano é que temem a inibição dos investimentos dos países ricos em tecnologias menos poluentes, já que seria mais barato e cômodo comprar os créditos florestais. Também poderia minguar o dinheiro que hoje financia, por exemplo, a construção de usinas hidrelétricas e eólicas em regiões com pouco poder econômico. “Isso é simples de resolver. Basta que o crédito de carbono florestal corresponda apenas a uma parcela das compensações. Não temos opção melhor para preservar a Amazônia e fazer as pessoas que moram aqui terem mais qualidade de vida do que incluir o Redd em um novo acordo global”, afirma Virgílio Viana, diretor da Fundação Amazonas Sustentável (FAS).
O Brasil, porém, por enquanto tem outra ideia. Em vez de deixar nas mãos do mercado o fluxo de dinheiro que financiaria o combate ao desmatamento, o governo criou um fundo que recebe doações voluntárias e libera dinheiro de acordo com a aprovação de projetos que têm por objetivo a preservação e o desenvolvimento sustentável. O Fundo Amazônia já tem em caixa US$ 110 milhões doados pela Noruega, que promete enviar mais US$ 1 bilhão em sete anos se houver redução do desmatamento. No princípio, apenas organizações não governamentais, populações tradicionais e instituições de pesquisa seriam atendidas, mas o Ministério do Meio Ambiente já estuda abrir o cofre também para empresas com fins lucrativos. “O financiamento para o combate ao desmatamento e para a conservação deverá vir de várias fontes, incluindo o mercado. Entretanto, favorecemos as soluções que tragam maior integridade ambiental para o sistema climático”, disse Luiz Figueiredo Machado, chefe da delegação brasileira que foi à cidade alemã de Bonn no mês de agosto para participar de uma reunião sobre o assunto.
O Redd na prática
Estima-se que, todos os anos, sejam lançadas no ar 8 bilhões de toneladas de carbono em decorrência das atividades humanas, e apenas 2,2 bilhões de toneladas são capturadas. Os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, departamento da ONU responsável pelos estudos sobre o aquecimento global, indicam que 20% das emissões no mundo são causadas por desmatamento, e a Amazônia contribuiria com algo entre 2,5% e 5% desse montante. Segundo dados do governo brasileiro, em 2008 foram devastados 13 mil quilômetros quadrados da floresta, o que corresponde a cerca de 160 milhões de toneladas de carbono emitidas. Para agravar a situação, o Ministério do Meio Ambiente detectou que a degradação do cerrado é responsável por emissões do mesmo nível da Amazônia. Entre 2002 e 2008, a destruição do bioma foi de aproximadamente 21 mil quilômetros quadrados por ano, por conta da pecuária e do plantio de soja, o que torna ainda mais urgente a busca por uma solução.
O Amazonas deu um passo em direção à criação de um mecanismo com as características do Redd em junho de 2007, quando aprovou a lei estadual 3.135, chamada de Lei de Mudanças Climáticas, e instituiu o Bolsa Floresta – clara alusão ao Bolsa Família, que se transformou em bandeira política do governo federal. Quem coordena a aplicação dos recursos desse programa atualmente é a FAS, dirigida por Virgílio Viana, secretário de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do estado na época em que a lei entrou em vigor. O programa social paga R$ 50 mensais às mães de famílias que se comprometem a manter as árvores em pé e participar de projetos de geração de renda por meio da fabricação ou coleta de produtos de manejo sustentável, como óleos, castanhas, frutas e mel. As associações de moradores das comunidades locais recebem cerca de R$ 2,4 mil por mês e outros R$ 240 mil anuais destinam-se à construção de escolas, postos de saúde, redes de comunicação e transporte.
De acordo com os dados divulgados pela organização, mais de 6,5 mil famílias estavam engajadas no programa em meados de 2009, envolvendo 10 milhões de hectares, espalhados por 14 unidades de conservação – algo ainda bem distante da meta de 60 mil famílias que o governador Eduardo Braga havia afirmado que atingiria em 2010. “Temos uma ênfase muito grande em educação e conscientização. Para entrar no Bolsa Floresta, as famílias participam de oficinas realizadas no meio do mato e firmam voluntariamente um compromisso para evitar o desmatamento. Os benefícios são claros e visíveis do ponto de vista prático. O preço da castanha, com esse programa, foi de R$ 4 para R$ 12. A floresta passa a valer mais em pé do que derrubada, é uma lógica de mercado. É melhor colher a castanha todos os anos do que vender a madeira da castanheira clandestinamente”, destaca Viana.
Uma das unidades de conservação participantes, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Juma, criada em 2006 numa área de 366 mil hectares próxima ao município de Novo Aripuanã, no sul do Amazonas, virou modelo de negócio para a comercialização de Redd. As 339 famílias que ali moram, divididas em 35 comunidades, recebem parte do dinheiro pago por uma rede de hotéis de luxo que compra créditos de carbono no mercado voluntário – sistema que, embora funcione de maneira diferente do comércio de permissões regulado pela ONU, também ganhou destaque nos últimos anos. Nesse segmento, paralelo ao oficial, as empresas de qualquer país compram certificados de projetos avaliados por instituições não governamentais reconhecidas internacionalmente. As iniciativas seguem quase a mesma metodologia dos MDL, mas há menos burocracia e exigências, o que permite a inclusão de ações rejeitadas pela ONU, como o Redd. Os créditos não podem ser debitados da conta dos países que assumiram compromissos de redução no Protocolo de Kyoto, mas muitas companhias, inclusive brasileiras, bancam o investimento com o objetivo de fazer propaganda de suas ações de responsabilidade socioambiental. “Temos um acordo com a rede Marriott de hotéis pelo qual eles se comprometem a fazer um investimento na implantação do projeto e transacionar os créditos entre os hóspedes que queiram neutralizar as emissões de carbono de suas estadias, dos encontros de negócios e seminários”, diz Viana. É dessa forma que o Redd tem funcionado até agora, mas a incerteza sobre seu futuro será muito grande se continuar dependendo apenas da boa vontade das corporações.
O único inventário de emissões produzido pelo Brasil até agora apresenta dados defasados, relativos ao ano de 1994, quando 75% do CO2 que o país lançava na atmosfera vinha do desmatamento. É, portanto, um cenário diferente de outros grandes emergentes, como China e Índia, que poluem o ar devido à alta geração de energia a partir da queima de carvão mineral. Especialista no assunto, o jornalista Washington Novaes acredita que o atraso na definição sobre a questão do Redd pode prejudicar as ações brasileiras para combater o efeito estufa e cita dados apresentados pelo economista britânico Nicholas Stern, que concluiu em 2006 um importante estudo sobre quanto custaria ao mundo impedir o aquecimento global – algo perto de US$ 1 trilhão por ano. “Stern esteve em São Paulo e disse, mas ninguém prestou muita atenção, que as emissões brasileiras dobraram em relação a 1994. Estão entre 11 e 12 toneladas de carbono por habitante a cada ano. O governo fala em fazer um inventário mais atualizado, mas nada de concreto ainda foi divulgado, e não aceita discutir compromissos de redução. O Brasil não tem uma estratégia para o desenvolvimento e a preservação da Amazônia”, afirma. A ONU é mais modesta nos números e acredita que com um gasto de aproximadamente US$ 500 bilhões por ano será possível impedir um colapso climático antes de 2050, mas também ressalta a importância de tomar medidas imediatas para a proteção da floresta brasileira.
Pressão internacional
Em um encontro dos chefes de Estado das nações mais ricas realizado em julho deste ano na cidade de L’Áquila, na Itália, foi anunciada a meta de impedir que a temperatura média do planeta suba, até 2050, mais do que 2º C em relação aos níveis medidos na década de 1990. Para que isso ocorra, será necessária uma redução de 60% das emissões de carbono em todo o mundo. O presidente Lula participou do encontro e concordou com os dados, o que abre espaço para aumentar a pressão de outros países para a aceitação do mecanismo de Redd. “O Brasil tem um enorme desafio e uma enorme possibilidade com relação à Amazônia. É assunto de suma importância para o mundo e é ideal para o país demonstrar liderança. Se quiser ser um protagonista global, é isso o que deve fazer”, opinou Todd Stern, enviado do governo americano ao Brasil para debater o assunto, no começo de agosto. Na mesma época, o ministro de Energia e Mudanças Climáticas do Reino Unido, Ed Miliband, esteve no país para apresentar o plano britânico de combate ao aquecimento global. Ele aproveitou para deixar seu recado em favor do Redd. “As florestas precisam ser parte da arquitetura financeira de um novo acordo global de redução das emissões, porque são um quinto do problema”, comentou. O sueco Björn Stigson, presidente do Conselho Empresarial Mundial para o Desenvolvimento Sustentável (WBCSD, na sigla em inglês), encampou o discurso. “O Brasil historicamente inovou nas discussões sobre o aquecimento global, mas o que realmente quer agora é um mistério.”
Internamente, a administração federal também é pressionada. Os governadores dos nove estados que compõem a Amazônia Legal – Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Maranhão, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins – assinaram uma carta em julho e a entregaram ao presidente pedindo a mudança da posição brasileira contrária à inclusão do Redd no novo acordo. O documento diz que, se o desmatamento na região acabar, o Brasil deixará de ser o quarto maior emissor mundial de carbono e cairá para o 17º lugar. Também estima ser possível receber cerca de US$ 20 bilhões anualmente por meio de créditos florestais e alega que os benefícios para a imagem externa do país contribuiriam para aumentar as exportações de carne, soja e etanol para Europa, Ásia e Estados Unidos. “Esse movimento dos governadores da Amazônia parece que está influenciando Lula. A posição do governo é insustentável, seria plenamente possível aceitar a inclusão do Redd no mecanismo e, depois, exigir dos países europeus um compromisso de redução bem maior do que o atual”, opina Márcio Santilli, coordenador da área de mudanças climáticas do Instituto Socioambiental (ISA), uma das organizações civis que têm participado do debate.
Existem ainda outros motivos que mostram a urgente necessidade de o Brasil estancar a sangria de recursos naturais na Amazônia. Santilli diz que a capacidade de armazenamento de carbono da floresta é somente uma parcela pequena da importância que o bioma tem. “O recorte do carbono é apenas um dos serviços ambientais que a floresta presta, acredito até que um dos menores. Existem muitos outros, como a regulação dos sistemas de chuvas e a preservação de recursos hídricos e da biodiversidade”, afirma.
A decisão final sobre o Redd, ao que tudo indica, deverá ser tomada apenas no encontro da Dinamarca, e nenhum especialista no assunto arrisca prever o que acontecerá. Porém, a julgar pela decisão dos nove governadores da Amazônia de viajar até Copenhague à revelia do governo federal para defender sua posição diante da comunidade internacional, é certo que o debate vai ficar cada vez mais quente.
Revista Problemas Brasileiros - SESC-SP
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