O que fazer com remédios vencidos?
País não sabe que destinação dar aos medicamentos descartados
ELISA ALMEIDA FRANÇA
Ilustradora de jornais e livros infantis, Andréia Vieira, moradora de Carapicuíba (SP), joga seus remédios vencidos no lixo comum, depois de retirá-los do blister – embalagem de plástico e alumínio – para enviá-lo para reciclagem. Já a professora de inglês Leila Caldas, preocupada com o risco de que um medicamento caia nas mãos das crianças que passam por sua casa em Campinas (SP), dilui em água aqueles que atingem o prazo de validade para então jogá-los no vaso sanitário. Há também quem vá guardando os produtos, indefinidamente, apenas por não saber o que fazer com eles. Afinal, sempre acabam sobrando umas pílulas aqui e uns comprimidos ali, após o término de um tratamento. As razões podem ser diversas – uma prescrição de apenas 12 unidades, quando só é possível comprar embalagens com 10 ou 20; um tratamento que não deu certo e precisou ser trocado etc.
Os medicamentos, vencidos ou não, podem ser perigosos. Todo mundo sabe que deve seguir a receita médica e a bula do remédio, pois do contrário, dependendo do fármaco, pode haver reações indesejadas, ineficácia do tratamento, potencialização do princípio ativo e até intoxicação. As sobras, além de possibilitar a automedicação, podem causar prejuízos ao meio ambiente e à saúde pública. Porém, embora seja preciso tomar cuidado na hora de se desfazer delas, o difícil é descobrir a melhor maneira de conseguir isso.
Quem telefona para o Disque Saúde, número que o Ministério da Saúde disponibiliza para dar orientações à população, descobre que o órgão não tem nenhuma recomendação a fornecer sobre o descarte de remédios. Não existe legislação que trate do assunto, no que tange ao consumidor doméstico. As exigências de normas como a resolução de diretoria colegiada (RDC) 306/04 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ou a RDC 358/05 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) somente se destinam aos grandes geradores de resíduos, como a indústria, os hospitais, as farmácias e drogarias e afins, que são responsáveis por sua correta destinação final.
“Ligue para o Centro de Vigilância Sanitária (CVS) de seu estado”, diz a voz do outro lado da linha. Em São Paulo, ao discar para o CVS, a orientação obtida é que os produtos sejam levados a uma farmácia ou drogaria. “Normalmente eles recebem”, afirma a atendente. Com efeito, a RDC 44/09 da Anvisa, publicada em agosto, faculta às farmácias e drogarias coletar medicamentos vencidos, desde que observados os cuidados com a saúde pública e o meio ambiente. Porém, quando a reportagem de Problemas Brasileiros visitou quatro drogarias da capital paulista, apenas uma se dispôs a aceitar os fármacos.
De acordo com Pedro Zidoi, presidente da Associação Brasileira do Comércio Farmacêutico (Abcfarma), os custos das farmácias e drogarias com o descarte de resíduos de medicamentos (remédios vencidos ou com a embalagem avariada, por exemplo) variam entre 0,2% e 0,5% de seu faturamento. Embora não pareça muito, a entidade protesta contra o fato de suas afiliadas arcarem com esse gasto. “Os fabricantes e os distribuidores não aceitam a devolução dos produtos, e o prejuízo sempre fica com as farmácias e drogarias”, diz. Em 2008, segundo a entidade, foi comercializado no país o equivalente a R$ 34,3 bilhões em medicamentos. Assim, é possível estimar que os custos do varejo com o descarte de resíduos de fármacos, no ano passado, ficaram entre R$ 68 milhões e R$ 171 milhões. Diante disso, Pedro Zidoi afirma que é difícil para os estabelecimentos assumir a responsabilidade adicional de dar destinação a medicamentos devolvidos pela população.
Em alguns municípios, é a vigilância sanitária local que se incumbe de fazer a coleta nas drogarias e farmácias. Os custos para os estabelecimentos, nesse caso, se resumiriam ao correto gerenciamento e armazenamento dos produtos. Em Campinas, segundo o Sindicato do Comércio Varejista de Produtos Farmacêuticos no Estado de São Paulo (Sincofarma), o recolhimento e a destinação são feitos por uma empresa terceirizada pela prefeitura, serviço pelo qual as farmácias e drogarias pagam R$ 1.104 ao ano.
Em Curitiba, desde 1998 existem pontos móveis de coleta de lixo tóxico, que inclui, além de medicamentos, pilhas, baterias, lâmpadas fluorescentes, tintas e óleo de cozinha. A localização dos recipientes para o recebimento do material muda periodicamente, alternando sempre entre terminais de ônibus da cidade. Depois de recolhido, o lixo é encaminhado a um aterro industrial classe 1, destinado a receber resíduos perigosos.
Perigo no lixo ou na água
Uma pesquisa feita pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas e Bioquímicas Oswaldo Cruz em 2005 com 1009 usuários de medicamentos em São Paulo revelou que 75% deles lançavam esses produtos no lixo doméstico. Entre outros problemas, quando um remédio é descartado dessa forma, fica acessível a crianças ou animais de estimação. Não por mera coincidência, os fármacos são a maior causa de intoxicação no Brasil, ano após ano, desde 1994. De acordo com o Sistema Nacional de Informações Toxicofarmacológicas (Sinitox), que compila os dados enviados pelos Centros de Assistência Toxicológica (Ceatox) dos estados, em 2007 houve oficialmente 34 mil casos de intoxicação por fármacos – 30% do total de ocorrências.
Rosany Bochner, coordenadora do Sinitox, não aprova a prática da doação de fármacos a comunidades ou igrejas, mesmo que ainda estejam no prazo de validade, uma vez que não se sabe se os produtos foram armazenados adequadamente – em local seco, fresco e abrigado da luz. Além disso, há o risco de promover uma “automedicação coletiva, algo perigosíssimo”, explica.
A opção de diluir cápsulas e pílulas antes de jogá-las no vaso sanitário ou usar o ralo da pia para descartar xaropes e outros líquidos, por sua vez, também é condenável. “Antigamente, era isso o que se recomendava à população”, afirma a especialista. A ideia, então, era evitar que os medicamentos caíssem nas mãos de outras pessoas ou que chegassem aos lixões, onde poderiam ainda ser ingeridos por animais ou poluir o ar, o solo ou o lençol freático. “Só que aí nos deparamos com outro problema: a contaminação da água.”
O fato é que, tanto em rios quanto em redes de abastecimento público, desde os anos 1970 têm sido encontrados resíduos de medicamentos, como revelam pesquisas feitas em vários países. No Brasil, onde os estudos sobre o assunto são mais recentes, um trabalho realizado em 1997 no Rio de Janeiro detectou anti-inflamatórios e antilipêmicos – fármacos destinados a reduzir os níveis de colesterol – no esgoto bruto, em efluentes de estação de tratamento e até em águas de rio, em concentrações distintas. Segundo o levantamento, a remoção das substâncias pesquisadas por meio de sistema de tratamento variou entre 12% e 90%.
Os resíduos farmacoquímicos estão entre os chamados “contaminantes emergentes”, poluentes que se estudam há pouco tempo. Eles são classificados lado a lado com produtos de higiene pessoal e resíduos industriais de efeitos ainda não muito conhecidos. Já se sabe, no entanto, que muitos deles podem atuar como interferentes endócrinos, isto é, substâncias com capacidade de provocar distúrbios hormonais, tanto em seres humanos quanto em animais – dependendo da substância, isso pode ocorrer mesmo em baixas concentrações. Assim, eles afetam não só o sistema reprodutivo, mas também o próprio equilíbrio das células de um organismo.
Também foram detectados em diversas pesquisas traços de anticoncepcionais e antibióticos, o que suscita preocupação. Os hormônios sintéticos, por exemplo, podem causar alterações no sistema reprodutivo de peixes e provocar problemas endócrinos nos seres humanos, além de estar relacionados a alguns tipos de câncer. O risco apresentado pelos antibióticos está no surgimento de bactérias super-resistentes, cada vez mais difíceis de combater.
Acredita-se que a maior parte dessas substâncias seja excretada por quem consome os remédios, pois se sabe que o organismo não absorve completamente os medicamentos. A estimativa mais citada pelos pesquisadores é de que entre 50% e 90% dos princípios ativos sejam eliminados e terminem nas estações de tratamento ou nos cursos de água. Os pesquisadores lembram, porém, que uma parte desses resíduos deve ter como origem o descarte.
Remédios na torneira
Algo que tem causado preocupação é o fato de essa contaminação, muitas vezes, já estar chegando às casas da população. Em 2006, após coletar material durante cinco anos, a química Gislaine Ghiselli, orientada pelo professor Wilson Jardim, do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), revelou que havia constatado a presença de princípios ativos de diversos medicamentos não só na água de rios da região como também na das torneiras. Entre as substâncias encontradas, havia anti-inflamatórios, como diclofenaco e ibuprofeno, e analgésicos, como dipirona e paracetamol, além de hormônios e outros compostos. Nos Estados Unidos, um levantamento da agência de notícias Associated Press divulgado no ano passado revelou que em 24 regiões metropolitanas americanas a água chega às residências com traços de antibióticos, psicotrópicos e hormônios sexuais, entre outras substâncias.
Imagine, então, a situação no Brasil, país em que grande parte do esgoto gerado não é nem coletada. De acordo com a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2000, a última realizada, apenas 33,5% dos domicílios do país são atendidos, ainda que parcialmente, pela rede de esgoto. De tudo o que é coletado, 80% vai parar nos cursos de água sem passar por nenhum tratamento. “Temos uma política muito tímida em saneamento”, afirma o professor Jardim, da Unicamp. Diante dessa carência, segundo o pesquisador, as concentrações de poluentes encontradas nos mananciais brasileiros são mais elevadas do que em outros países.
Os estudiosos do assunto afirmam que o tratamento de esgoto feito no país se destina a degradar apenas os resíduos orgânicos, uma vez que utiliza tecnologias muito antigas, e, por essa razão, necessita de mudanças. “O sistema existente hoje foi feito para filtrar o material suspenso”, afirma o engenheiro sanitário Ivanildo Hespanhol, diretor do Centro Internacional de Referência em Reúso de Água (Cirra) da Universidade de São Paulo (USP). Segundo a química Raquel Pupo Nogueira, pesquisadora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Araraquara (SP), o modelo atual não foi concebido para tratar compostos mais complexos. “O tratamento é biológico, baseado em microrganismos, e serve para substâncias que são biodegradáveis.” Jardim observa, no entanto, que o sistema deveria remover, se não todos, pelo menos grande parte dos contaminantes.
De acordo com a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), porém, ainda não há motivo para investir em modelos mais novos de tratamento. “Hoje não há evidências muito fortes e concretas de que as substâncias possam causar problemas sérios à saúde”, afirma Américo Sampaio, gerente do Departamento de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação da maior companhia de abastecimento da América Latina, situada na maior e mais rica cidade do país. “Nenhuma empresa vai fazer investimentos antes que estejam definidas as concentrações máximas permitidas.” Esses limites, ao que parece, por enquanto não foram fixados em nenhum lugar do mundo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem, de sua parte, um grupo de estudo cujo objetivo é determinar diretrizes para que os países estabeleçam padrões para os resíduos químicos encontrados na água.
Soluções?
Os resíduos de produtos farmacêuticos enquadram-se no “grupo B”, definido pela RDC 306/04 da Anvisa como aqueles que podem apresentar riscos à saúde pública ou ao meio ambiente. Segundo Regina Barcellos, coordenadora de Infraestrutura em Serviços de Saúde do órgão, entre as soluções para a destinação final de resíduos de medicamentos estão a “inertização”, a incineração e a disposição em aterros classe 1, também chamados de especiais. No primeiro caso, utiliza-se uma substância química que “anula” o risco de um produto específico. Na opinião da coordenadora, no entanto, esse processo é complicado e não muito seguro. “Ao inertizar, pode-se criar outro risco.” Em outras palavras, existe a possibilidade de gerar resíduos mais tóxicos ainda. Já para proceder à incineração, é preciso que a máquina atinja temperaturas acima dos 1.000º C. “Além disso, o equipamento tem de ter uma licença específica.” Quando o destino é o aterro, o resíduo deve ser encapsulado em bombonas com identificação de conteúdo, armazenadas em espécies de prateleiras.
Obviamente, porém, não há incineradores adequados e aterros especiais distribuídos em todas as regiões do país. A farmacêutica industrial Elda Falqueto, mestre em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que adotou como exemplo o diazepam (um ansiolítico) e pesquisou a gestão de resíduos de medicamentos em São Mateus, no interior do Espírito Santo, verificou que lá eles eram mandados para um incinerador. Só que o equipamento, localizado em um município vizinho, nem possuía a licença apropriada. “O gerenciamento de resíduos ainda apresenta grandes deficiências nos aspectos de tratamento e disposição final”, diz o estudo realizado por Elda. Em sua opinião, o país provavelmente tem inúmeras outras localidades com infraestrutura deficiente como a de São Mateus.
Segundo a OMS, a incineração ainda é a melhor destinação, no caso de produtos farmacêuticos. Apesar de admitir as qualidades do sistema – em suas palavras, o equipamento responsável pela queima funciona como um computador, e trava se não atinge a temperatura programada –, a professora Wanda Gunther, docente do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da USP, ressalta que essa tecnologia apresenta riscos. Na presença de cloro e de matéria orgânica, as emissões gasosas resultantes do processo podem vir a incluir, por exemplo, dioxinas e furanos, substâncias consideradas muito tóxicas e com potencial cancerígeno. “A norma em São Paulo estabelece um teor máximo de cloro para que o resíduo possa ser queimado”, afirma. Assim, para atendê-la, é preciso conhecer muito bem a composição química das substâncias descartadas, algo que nem sempre acontece. O cloro está presente em produtos como o PVC e outros plásticos. Na opinião de Wanda Gunther, se os resíduos farmacoquímicos pudessem ser tratados de outra maneira, seria melhor. “Embora existam controles, não se sabe ao certo o que resultará da mistura dos medicamentos, que estão cada vez mais complexos. É possível que estejamos gerando algo que não conhecemos.”
Luzes no fim do túnel
Um ponto sobre o qual não há divergência entre os especialistas consultados é o fracionamento de medicamentos. A medida permitiria ao cidadão adquirir apenas a quantidade de pílulas ou comprimidos prescrita pelo médico. “Não vejo outro caminho para o consumidor não ter problema com as sobras”, diz Regina Barcellos, da Anvisa. Segundo Elda Falqueto, o fracionamento trataria uma parte do problema na fonte, já que reduziria o volume de resíduos.
As medidas legais que tratam do tema, porém, estão, cada uma à sua maneira, emperradas. Em maio de 2005, a RDC 135/05 da Anvisa (substituída mais tarde pela RDC 80/06) regulamentou a prática, definindo regras de acordo com as quais as farmácias e drogarias deveriam colocá-la em ação. O maior problema, no entanto, é que a RDC não torna a medida obrigatória. Com esse objetivo, o Executivo enviou ao Congresso há três anos o projeto de lei 7.029/06, que tramita desde então. Na opinião de entidades como o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e a Associação Pro Teste, sem a obrigatoriedade, é difícil acreditar que o fracionamento venha a ser implementado.
Atualmente, um grupo de trabalho da Anvisa que reúne também representantes do setor farmacêutico discute o gerenciamento de resíduos químicos para encontrar respostas para alguns entraves. Uma das propostas é a inclusão de dados, no momento do registro dos produtos pela indústria, a respeito dos riscos que apresentam, indicando em que condições devem ser descartados. “Na Europa e nos EUA, isso já acontece”, afirma Regina Barcellos. “Os europeus fazem inclusive a avaliação de risco ambiental do medicamento.”
Esse dispositivo da União Europeia é o primeiro no mundo a considerar que há a possibilidade de certos fármacos, mesmo em baixíssimas concentrações, apresentarem algum risco para o meio ambiente (e subsequentemente para a saúde pública). A partir de informações fornecidas pelos fabricantes, exigidas pelo bloco desde 2006, a Suécia foi além. Uma base de dados online, que teve início em Estocolmo e depois se estendeu ao restante do país, permite aos médicos consultar a classificação ambiental dos fármacos. O objetivo é possibilitar o uso de opções de tratamento que, eventualmente, ofereçam menos riscos. Será que um dia chegaremos lá?
Revista Problemas Brasileiros
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