quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Com base em que critérios se pode dizer que uma guerra é justa?






Maíra Matthes
26 de março de 2022

Teoria desenvolveu critérios objetivos que podem ser usados por quem busca chegar a uma conclusão sobre quando o uso da força é moralmente justificável
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No início dos anos 1970, o filósofo americano Michael Walzer teve uma ideia – ou quase isso. Ao acompanhar pela imprensa a Guerra do Vietnã, Walzer se deu conta de que tinha uma convicção íntima, profunda, de que a atuação dos Estados Unidos naquele conflito era injusta e moralmente indefensável. Não é que Walzer fosse um pacifista, e se opusesse a toda e qualquer guerra – de forma alguma. Alguns anos antes, quando Israel atacara preventivamente seus vizinhos árabes, o gesto lhe parecera não só compreensível, mas justificável. Agora, apesar da força do sentimento de repulsa pela ação americana, não lhe estava claro, contudo, de que maneira poderia justificar aquele sentimento moral. O que fundamentava o seu julgamento, a sua intuição sobre a guerra? Será que era possível discernir critérios claros e rigorosos para julgar quando uma guerra era justa?

Meio século mais tarde, muitos de nós compartilhamos de sensação semelhante à de Walzer – só que desta vez em relação à guerra iniciada pela Rússia contra a Ucrânia. A atuação do Exército sob o comando de Vladimir Putin tem sido condenada quase universalmente por cidadãos, países e atores internacionais os mais diversos. A linguagem dessa condenação, antes de ser jurídica ou política, é sobretudo uma linguagem moral. Ao usarmos termos como “agressão”, “atrocidade”, “massacre”, “horror” e “legítima defesa” nos alçamos ao campo do debate normativo sobre a guerra. Apesar da crença disseminada que não existe moral nem lei quando as armas falam, segundo o velho adágio romano (Inter arma silente leges), a realidade nos mostra um mundo bastante articulado, no qual encontramos uma série de posições e julgamentos sobre a justiça e a legitimidade da guerra.

Parte do debate rigoroso que hoje se faz sobre a guerra da Ucrânia – e sobre as guerras em geral – se baseia na contribuição feita por Michael Walzer, que afinal organizou suas ideias, ainda na década de 1970, no livro “Just and Unjust Wars - A Moral Argument with Historical Illustrations”, publicado em 1977. Na obra, Walzer realiza o projeto idealizado alguns anos antes, buscando embasar filosoficamente intuições sobre a justiça ou a injustiça de uma dada guerra. O livro, que hoje é considerado um clássico na área de filosofia política e nos estudos éticos e morais sobre a guerra, retoma e atualiza uma tradição filosófica ocidental muito antiga a qual remonta, no Ocidente, à era cristã, a teoria da guerra justa.

Essa teoria pretende abordar a questão normativa sobre a guerra de modo sério e criterioso. Para isso ela desenvolveu critérios formais e objetivos que podem ser usados por todos aqueles que buscam chegar a uma conclusão sobre a justiça ou a injustiça do uso da força no mundo. Antes de mais nada ela traça uma distinção fundamental entre as questões pertinentes à entrada em guerra (jus ad bellum) e àquelas pertinentes ao comportamento durante a guerra (jus in bello). Em relação ao primeiro, os seguintes critérios são pertinentes para julgar sobre a justiça de uma guerra: 1. Podemos identificar uma causa justa para ir para a guerra? 2. A guerra foi iniciada por uma autoridade legítima?; 3. A guerra será feita com uma boa intenção?; 4. As soluções pacíficas de controvérsia foram esgotadas e a guerra é lançada em último recurso?; 5. A guerra é uma resposta proporcional à violação de direito que se pretende remediar? 6. Existe uma probabilidade razoável de sucesso militar de modo que a guerra não represente o suicídio coletivo das forças armadas? Em relação ao jus in bello, a preocupação central é sobre os métodos e maneiras de se fazer a guerra de modo aceitável moralmente. Podemos distinguir dois critérios essenciais: 1. Um dado ataque militar é discriminatório? (Ele visa apenas objetivos militares e não a população civil e seus bens?) 2. O ataque militar é proporcional? (A vantagem militar do ataque supera os possíveis efeitos colaterais negativos que ele proporciona?). No coração dos critérios referentes ao jus in bello jaz a distinção moral entre civis e combatentes. O amadurecimento e desenvolvimento desses critérios se transformou no que hoje chamamos de “direito internacional dos conflitos armados” ou simplesmente direito internacional humanitário codificados nas Convenções de Genebra de 1949 e em seus Protocolos Adicionais.


A LINGUAGEM USADA NA CONDENAÇÃO DA INVASÃO RUSSA À UCRÂNIA, ANTES DE SER JURÍDICA OU POLÍTICA, É SOBRETUDO UMA LINGUAGEM MORAL



Para Michael Walzer, a separação existente entre jus ad bellum e jus in bello não é meramente técnica ou didática, como para outros autores contemporâneos escrevendo sobre a teoria da guerra justa. Ela revela uma dupla dimensão moral da guerra já que as decisões relativas à entrada ou não em guerra recaia basicamente sobre representantes políticos enquanto as decisões relativas à escolha dos alvos militares não são apenas de responsabilidade política, mas também daqueles que estão voluntária ou involuntariamente portando uniformes e atirando no inimigo (oficiais, soldados ou milícias recrutadas). Assim, a guerra é sempre julgada duas vezes e a cada vez, de modo independente: é possível que uma guerra seja injusta no tocante ao jus ad bellum e justa no tocante ao jus in bello ou o contrário. Mas também é possível que uma guerra seja injusta nos dois campos, caso ela 1. não tenha uma causa justa; 2. Não seja iniciada por uma autoridade política que representa legitimamente o povo; 3. Não seja feita com uma intenção correta que tem a paz como objetivo maior; 4. Tenha sido “uma guerra de escolha” sem que os meios diplomáticos tenham sido esgotados; 6. A probabilidade de sucesso militar não é clara. Além do desrespeito a todos esses critérios, uma guerra injusta também no quesito in bello seria aquela travada desrespeitando a distinção básica entre pessoas e bens civis de pessoas e bens militares, resultando no bombardeamento direto daqueles que não combatem (civis) ou daqueles que não combatem mais por estarem machucados ou aprisionados (prisioneiros de guerra).

A guerra iniciada por Vladimir Putin contra a Ucrânia no dia 24 de fevereiro parece ser um desses tristes exemplos. Bombardeamentos aéreos em centros urbanos se dão sem a exigência de precaução ditada pelo direito humanitário. Desde a primeira semana de guerra, o mundo pode observar, atônito, o bombardeamento aéreo de maternidades, residências e até de um teatro que acolhia civis e indicava, em grandes letras brancas desenhadas sobre a grama, a palavra “crianças” em russo. O desrespeito aos princípios in bello foram tão alarmantes que, de forma sem precedentes, um grupo de 39 países entraram com um pedido de investigação no Tribunal Penal Internacional contra crimes de guerra na Ucrânia. O casus belli apresentado por Vladimir Putin num discurso transmitido pela televisão na manhã do dia 24 de fevereiro não satisfaz os critérios delineados acima que regulam o jus ad bellum. À ausência de uma causa justa objetiva e comunicável da parte do Kremlin se soma a ausência de uma intenção correta. O fato que meros pretextos são apresentados no lugar de razões justificatórias abre espaço para várias opções interpretativas sobre qual seria a verdadeira intenção do chefe de Estado. Dentre elas podemos destacar algumas tais como: o desejo nostálgico de reconstruir um império russo perdido, o desejo de rediscutir o acordo territorial do fim da Guerra Fria ou o receio das repercussões na Rússia das recentes ondas de liberalização e democratização na Ucrânia. Seja qual for a verdadeira intenção orientando a escolha armada do Kremlin, como lembra Saba Bazarga-Foward, o que é notório nessa situação é que nenhuma delas está em condições de justificar moralmente a invasão de uma nação pacífica e soberana. A opção da Rússia de se valer do uso da força contra um país vizinho é um ato de agressão cristalino que encontra seu aparato justificatório apenas numa campanha de desinformação, confusão mental e revisionismo histórico.

Diante da imoralidade latente dessa guerra de acordo com os critérios da guerra justa, Michael Walzer nos lembra que sua justificação só encontra esteio em três grupos distintos cujas preocupações se distanciam dos problemas morais reais apresentados pela guerra: os realistas que acreditam na validade moral do conceito de “esferas de influência”, os representantes da extrema direita que admiram líderes autoritários, e os da extrema esquerda – que acreditam que os Estados Unidos e a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) são sempre os responsáveis por todos os males deste mundo.

Maíra Matthes é doutora em filosofia pela Université de Paris, foi visiting PhD na European University Institute (Itália). Possui formação em direito humanitário no Institut International de Droit Humanitaire (Itália).
NEXO

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