sexta-feira, 13 de maio de 2022

A morte é o dilema do nosso tempo




Vinícius Mendes


O que antes só se vivia na guerra, agora é a vida cotidiana. Morrer é tristeza, mas também resignação


Como desejo e como guerra, como horror e como cotidiano, como lamento e como vitória, a morte retorna ao nosso tempo como seu grande dilema. Agora morrer não é somente a consequência do método histórico dos estados, paridos dos seus próprios exércitos, mas é também parte da coleção de normalidades da vida ordinária. Se ditaduras, impérios e mesmo democracias sempre foram instituições que relativizaram o assassinato para sustentar seus objetivos, suas sociedades nunca deixaram de se chocar. Essa foi a história do último século em boa parte do mundo – mas algo aconteceu de lá para cá que ainda não compreendemos.

A resposta menos pior é a pandemia, que, com a rapidez dos fenômenos da natureza, recolocou a morte como fato incontrolável. Ela primeiro se vestiu de número, de seta, de planilha, de gráfico, de porcentagem, de manchete, numa matemática que os jornais pensavam ser possível usar para paralisar o mundo. À falta de corpos empilhados, porém, as pessoas seguiram frequentando bares e cafés – em detrimento às regras dos governos. Alguma filosofia chegou a argumentar que não havia outro jeito, que era tanta gente morrendo que a vida não poderia sentir todas as dores. Que era preciso uma nova atitude blasé para seguir existindo.

A resposta mais crua, porém, joga a explicação para o nosso tempo. Algo aconteceu nele que fez com que a morte, além de prática estatal, que sempre foi, também se encrustasse como um instrumento de resolução do ordenamento do dia a dia, das pessoas que tecem a sociedade, dos seus discursos morais, da percepção comum que têm da vida comum.

É assim, então, que a morte regressa a esse tempo como suplício. É mais um dos nossos atuais regressos àquele tempo que o Ocidente insiste em chamar de Idade Média: não porque nele a espera pelo momento de morrer — ou, antes, pelo cumprimento da promessa cristã de volta do messias ao mundo — dava o tom dos dias, mas porque ser morto em público voltou a ter uma aura de justiça. Na América Latina, na Ásia, nos confins do Hemisfério Sul, delitos são punidos com espancamentos, membros amputados e assassinatos gravados que, depois, viram mercadoria moral da população. Os sentenciadores não são instituições: são apenas outras pessoas.

Não é à toa: ao invés do choque, há uma sensação de providência. O bandido, uma vez bandido, não tem mais direitos. Ele deve pagar por toda sua condição – da sua escolha individual ao contexto que o forjou como tal – com a própria vida.

Essas mortes carregam a correlação de ideias que fez o suplício medieval existir. Ele era o pressuposto coletivo de que a morte — especialmente aquele jeito cruel de morrer — era a pior das experiências que um ser humano poderia ter. Mas ali morrer já era, em qualquer circunstância, um acontecimento, uma ruptura com o rotineiro, e por isso mesmo que era um suplício (de suplicar publicamente aos deuses), ou a única justiça que se tinha.

A morte volta agora como resignação não dos governos, mas dos governados. Morrer não é só inevitável como é aceitável. No horizonte histórico do Brasil, não se trata exatamente de uma grande novidade — este é o país que, não apenas como instituição, assassinou nativos, africanos, migrantes, e que ainda hoje o faz, como sociedade, com os sujeitos que rompem um suposto modelo tradicional, rígido, de existência. Mas o que irrompe como novo é justamente a amplitude dessa indiferença, a transformação dela em costume popular, em experiência cotidiana. Não é a necropolítica, mas a necrossociedade que a sustenta.

Diante de tanta morte, este país passou a topá-la, até mesmo comemorá-la — verdadeira mudança psíquica que ainda está por se compreender, já que revisita toda a lógica do luto. É assim que quando um funcionário estatal sugere que o aumento de óbitos de idosos alivia a folha de pagamentos da previdência, o que é bom para a nação, sabe-se mais sobre esta nação do que sobre o seu funcionário.

É assim também que um cadáver não incomoda os consumidores de um supermercado, ou os transeuntes de uma padaria, ou que ocupa, quando negro, a frieza de uma capa de jornal. É assim que o governante, diante da morte dos seus governados, responde que não é ele quem vai abrir as covas para enterrá-los. Se a pandemia foi, de fato, o estopim desse regresso do dilema da morte ao mundo, o Brasil bolsonarista adicionou a ele a questão da indiferença.

A morte retorna ainda como arma – mas agora em um ambiente que almeja a democracia e, portanto, a vida. Nesse sentido, também ganha um velho contorno de justiça. Quando alguém inconveniente morre, um adversário político, um inimigo de discurso, o suplício não acontece como na Idade Média porque uma parte da multidão ao contrário, comemora. Ela não percebe sua fraqueza: por um lado, ainda não entendeu que quando um dos seus também morre, há sempre outra parte da multidão, do lado de lá, a comemorar. É um ciclo sem fim. Por outro, não compreende o paradoxo da sua alegria: se a morte se tornou seu único instrumento para vencer, é porque todas as suas outras possibilidades de ganhar já foram derrotadas. É o símbolo do seu fracasso.

E, à justificativa de que se trata de uma verdadeira perversão romper com o desejo dos oprimidos em ver seus opressores morrendo, a resposta é parecida: trata-se do desespero de quem tem, na morte, a única possibilidade de acabar com a opressão. Tem-se, então, a receita do fim do mundo: à morte se responde com morte, sem se dar conta que o problema não está na morte do carrasco, mas, pesado no coração, o desejo de aniquilação como solução inequívoca. Novamente, ela fala mais sobre as nossas capacidades de acabar com qualquer opressão do que sobre a existência dos opressores.

Nesse tempo estranho, ainda não compreendido, morrer é relativo. É uma marca e um paradoxo dessa época – que ambiciona a democracia, a igualdade, a justiça, mas se conforta na morte. Quando ela acontece, sempre há de se perguntar antes se ela é digna de angústia ou de festa. Depois, de saber quem chora pelo cadáver e quem, ao contrário, regozija. Só então a morte é vivida, já filtrada, pelos dois lados. Eles sempre existem, inevitavelmente: uma hora se chora, na outra se comemora, mas nunca se trata de um acontecimento uníssono. O tempo das grandes comoções não existe mais.

Era assim só na guerra. Era.



Vinícius Mendes é jornalista e sociólogo.
Le Monde Diplomatique

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