Descubra com seus alunos as delícias nativas de nosso país com a ajuda da biogeografiaPOR:Tory Helena
Você já teve a oportunidade de experimentar um sorvete de cambuci? E de tomar um suco de cupuaçu, ou, quem sabe, comer um doce de guariroba? Se a sua resposta para essas perguntas foi “não”, saiba que você não está sozinho. Apesar de o Brasil possuir mais de 300 frutas nativas de seu vasto território, grande parte do que compramos em feiras e supermercados é de exóticas (isto é, originárias de outros países ou continentes). Até mesmo a banana, a laranja e a manga, frutas com “a cara” do Brasil, na verdade são asiáticas e só chegaram aqui por obra da colonização europeia. Nada contra, é claro – afinal, elas são deliciosas e nutritivas –, mas a verdade é que as variedades exóticas acabaram ofuscando a grande diversidade das frutas brasileiras, menos comercializadas e, por isso, desconhecidas da maioria da população. A feijoa (ou goiaba-serrana), originária da Região Sul do Brasil, ficou por muito tempo ausente do paladar nacional, mas, levada à Europa no fim do século 19, fez o maior sucesso. Já o umbu, típico da Caatinga, foi imortalizado por escritores como Graciliano Ramos e Euclides da Cunha, que descreveu o umbuzeiro como “a árvore sagrada do Sertão” no clássico livro Os Sertões. Generosa, a planta produz até 300 quilos da fruta por safra, consumidos in natura e em forma de doces, sorvetes e sucos. Nossas frutas nativas têm muita história - e tudo isso pode servir de ponto de partida para dar mais sabor às aulas de Geografia.
Essa foi a ideia que a professora fluminense Aline Mello Campos teve quando fazia uma viagem pelo estado de Goiás. Lá, enquanto experimentava picolés de frutas do Cerrado pouco conhecidas, ela teve um estalo: por que não trabalhar o conteúdo de Geografia do 7º ano, que tradicionalmente enfoca o território brasileiro, a partir de uma viagem pelas frutas nacionais? “Com base nesse assunto, me apoiei nos conhecimentos da biogeografia para criar um projeto que ajudasse os alunos a pensar na distribuição da nossa flora pelo território. Além disso, pude discutir por que algumas frutas não são comercializadas e não chegam até o nosso sacolão”, reflete a professora, que dá aulas no Ciep 408 - Sérgio Cardoso, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro.
A biogeografia é um campo da ciência dedicado ao estudo da distribuição geográfica da biodiversidade. Embora não faça parte do currículo da Educação Básica, ela pode entrar na sala de aula não apenas para fundamentar um trabalho conjunto de Geografia e Biologia, mas também para articular essas disciplinas a temas que costumeiramente ficam de fora dos livros didáticos, como os saberes da cultura alimentar de comunidades indígenas e quilombolas. “Como a biogeografia é um campo interdisciplinar, os conceitos e abordagens podem assumir diferentes formatos. Na Geografia escolar, em particular, costuma-se mobilizar esses conhecimentos quando se ensinam os conceitos de natureza, sociedade, paisagem, lugar, território e região”, explica Ivan Matos, professor de Biogeografia da Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA).
Ivan ressalta, ainda, que dá para levar as descobertas da biogeografia juntamente com conteúdos mais tradicionais do currículo escolar, como biodiversidade, domínios morfoclimáticos, áreas endêmicas, além da questão socioambiental. No caso desta última, a biogeografia estimula o debate sobre os riscos e impactos de desmatamentos, queimadas, da pesca e caça predatórias. “Essa é uma maneira de discutir a necessidade de proteger as espécies de plantas e animais de cada região, sob pena de perdermos essa diversidade por causa de uma exploração predatória do território”, afirma Ivan.
O sabor das frutas
Depois de pesquisar sobre o tema, Aline abriu a conversa perguntando aos estudantes quais frutas eles conheciam, de quais gostavam mais e onde costumavam encontrá-las. Como a escola se localiza em uma região periférica, com muitos alunos em situação de extrema pobreza, o assunto era delicado, já que as frutas e legumes são caros e nem sempre as famílias têm condições de comprá-los. Um dos alunos, porém, se lembrou das frutas no quintal da avó e contou isso para os colegas. A partir daí, a turma se animou a conversar sobre o assunto. Um ponto alto da atividade envolveu uma visita ao sacolão do bairro, localizado na esquina da escola. Com a autorização da gestão escolar e dos pais, e tendo em mãos um questionário preparado previamente, Aline e sua turma foram a campo para perguntar ao seu João, dono do estabelecimento, quais eram as frutas disponíveis no sacolão, quais eram mais consumidas e até se elas continham agrotóxicos. Ao final, com 50 reais disponibilizados pela professora, compraram e degustaram algumas delícias em sala de aula.
Além de apresentar frutas nativas dos biomas (veja alguns exemplos no mapa), a professora propôs que os alunos refletissem sobre a experiência a partir da leitura do livro Abecedário Poético de Frutas, de Roseana Murray. Depois, os alunos produziram poesias a partir da degustação. “Queria que eles tivessem uma experiência ao mesmo tempo sensorial e poética”, lembra Aline. Quem não conseguiu articular os pensamentos em poesia pôde optar por relatar as sensações em prosa. O aluno Alanderson, porém, impressionou a professora pela sensibilidade, relacionando o assunto com um fato triste de sua vida. Para ele, o abacate teve um gosto podre igual ao que sentiu quando sua avó cometeu suicídio. Em outra poesia, ele contou sobre o dia em que seu pai quebrou a perna ao provar uma goiaba.
O projeto foi um dos 50 finalistas do Prêmio Educador Nota 10 em 2018. Sueli Furlan, professora do departamento de Geografia da USP e uma das selecionadoras do prêmio, aponta que um dos méritos de Aline foi associar a investigação científica a um conteúdo pouco abordado nas escolas públicas. Além disso, o trabalho valorizou a flora brasileira e tornou mais significativo o estudo dos biomas. “Mapear as frutas nativas valoriza a biodiversidade, e a ida ao sacolão é algo simples, que pode ser replicado em outras escolas”, diz Sueli. O projeto também rendeu outros frutos para a professora: relatado em artigo, foi apresentado para outros educadores em um congresso na Unicamp. Além disso, ela já prepara sua próxima empreitada: um projeto sobre as árvores brasileiras. “Os alunos saem da escola sem conhecer as árvores e as frutas do nosso território”, lamenta Aline. “Mas fiz um trabalho que juntou a dimensão natural e a humana, além de questões políticas e econômicas”, conclui a professora.
FRUTAS DE CADA BIOMA
AMAZÔNIA
Fruta: Açaí
Nome científico: Euterpe oleracea
Característica: A fruta tem elevado valor energético e é bastante consumida em sucos e doces.
Fruta: Cupuaçu
Nome científico: Theobroma grandiflorum
Característica: Volumoso e muito perfumado, o fruto é bem aproveitado em sorvetes e bombons.
CAATINGA
Fruta: Juá
Nome científico: Ziziphus joazeiro
Característica: De casca amarronzada, o fruto do juazeiro é ácido e adocicado e rico em vitamina C.
Fruta: Umbu
Nome científico: Spondias tuberosa
Característica: De sabor agridoce, tem alto valor nutritivo e é bastante disseminado na Região Nordeste.
PANTANAL
Fruta: Bocaiuva
Nome científico: Acrocomia aculeata
Característica: As frutas dão em cachos e são muito conhecidas em Mato Grosso do Sul.
Fruta: Guavira
Nome científico: Campomanesia xanthocarpa
Característica: Com muita vitamina C, a fruta amadurece rápido e tem sabor adstringente.
CERRADO
Fruta: Baru
Nome científico: Dipteryx alata
Característica: Também conhecido como cumaru, tem gosto amendoado e alto valor nutritivo.
Fruta: Coco-Guariroba
Nome científico: Syagrus oleraceae
Característica: Seus frutos apresentam uma amêndoa branca e são muito utilizados em doces caseiros.
PAMPAS
Fruta: Feijoa
Nome científico: Feijoa sellowiana
Característica: Nativa do Sul do Brasil, seu sabor lembra uma mistura de goiaba, banana e abacaxi.
Fruta: Pinhão
Nome científico: Araucaria angustifolia
Característica: A árvore dá um pseudofruto, cuja semente é o pinhão, muito importante na culinária regional.
MATA ATLÂNTICA
Fruta: Cambuci
Nome científico: Campomanesia phaea
Característica: Com sabor que mistura o limão e o melão, o fruto é muito comum em São Paulo.
Fruta: Jabuticaba
Nome científico: Plinia cauliflora
Característica: Muito encontradas em Minas Gerais, as frutinhas crescem nos galhos e até no tronco da árvore.
Fontes: Frutas Brasil, de Silvestre Silva e Helena Tassara.
PALAVRA DE ESPECIALISTA
Os pontos mais interessantes do projeto da professora Aline, segundo Sueli Furlan
1) A professora trabalha, via projeto, um assunto pouco abordado na escola: a biogeografia.
2) Ao partir das frutas nativas, o projeto amplia o repertório alimentar. Também faz discussão sobre o acesso que temos a elas, em comparação com as exóticas.
3) Os alunos visitaram o sacolão do bairro para pesquisar quais eram as frutas vendidas e tiveram a oportunidade de aplicar questionários.
4) O trabalho é simples e possível de ser replicado por outros professores, que devem adaptá-lo à realidade de sua escola
PARA SABER MAIS
Biogeografia de Mark V. Lomolino e James H. Brown
Biogeografia: dinâmicas e transformações da natureza de Adriana Figueiró, Oficina de Textos
Contribuições das epistemologias do Sul para o ensino de biogeografia(s) de Ivan Matos e Rosiléia de Almeida
Biogeografia: reflexões sobre temas e conceitos de Sueli Furlan
Revista Nova Escola
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