terça-feira, 21 de março de 2017

Tráfico de órgãos humanos na China levanta polêmica


RTP

Cartaz de protesto do grupo Falun Gong, contra o transplante forçado de órgãos de prisioneiros | Jameson Wu, Reuters
 
Convidar a raposa para o galinheiro: isso está a fazer, segundo os críticos, o Vaticano, ao acolher um antigo vice-ministro chinês da Saúde numa conferência sobre tráfico de órgãos.


Ao contrário dos vários países em que o tráfico de órgãos humanos é levado a cabo por mafias mais ou menos proscritas, na China esse tráfico é feito legalmente pelo Estado. O seu banco de órgãos é o corredor da morte das prisões.

O número de execuções capitais é um segredo, também ele de Estado. Calcula-se que oscile entre as 3.000 e as 7.000. Uma coisa é certa: a família da pessoa executada não tem direito ao corpo, não pode enterrá-lo e não pode vê-lo.

Os motivos do secretismo tornam-se mais transparentes, se se der crédito a Nicholas Bequelin, director regional da Amnistia Internacional para a Ásia oriental, citado no diário britânico The Guardian. Segundo Bequelin, a grande maioria dos órgãos transplantados na China provém de prisioneiros condenados à morte.

O facilitismo que o sistema de saúde chinês desenvolveu ao apoiar-se nesse "banco de órgãos" poderá mesmo afrouxar a pressão para que se crie um programa nacional de dadores voluntários. O facto é que o programa não existe e a sua criação vai sendo adiada.

Segundo o mesmo Bequelin é também por esse motivo que a China não adere às recomendações da Organização Mundial de Saúde sobre critérios para determinar quando alguém pode considerar-se morto: para algumas transplantações, retira-se o órgão de um prisioneiro que, segundo os critérios da OMS, ainda seria classificado como vivo.

Além disso, o ritmo e o calendário das execuções está subordinado, segundo aquele responsável da Amnistia, à intensidade da procura: "O timing da execução depende por vezes, segundo pensamos, da necessidade de uma determinada operação de transplantação. Executa-se esta pessoa a tal hora em tal dia, porque é nessa altura que o paciente tem de estar pronto".

A conferência sobre tráfico de órgãos vem na linha de anteriores declarações vaticanas, manifestando preocupação com o alastramento desse flagelo. Especialmente relevante tinha sido uma mensagem do papa Francisco no ano passado, considerando o tráfico de órgãos humanos como "uma nova forma de escravatura".

A conferência organizada pela Academia Pontifícia de Ciências irá realizar-se a partir de amanhã, terça feira, e durará dois dias. Ao convidar o antigo vice-ministro chinês da Saúde, Huang Jiefu, o Vaticano pretende melhorar as suas relações com o Governo de Pequim e espera que isso lhe permita exercer alguma influência no que diz respeito à observância de direitos humanos e de liberdade religiosa.

As vozes mais críticas põem, no entanto, em dúvida que o convite sirva esses propósitos. Segundo Wendy Rogers, um perito em deontologia médica da Universidade australiana de Macquarie, o convite a Huang e a sua visita, já agendada, ao papa Francisco arrisca-se a dar "um ar de legitimidade" à política chinesa de transplantações.

Segundo Rogers, "a Academia Pontifícia de Ciências devia saber como a caução, mesmo indirecta, de prestigiadas entidades estrangeiras é usada pelo aparelho de propaganda da China para polir a reputação do seu sistema de transplantação antiético". E apela à conferência para "que considere o apelo dos prisioneiros encarcerados na China, que são tratados como bancos de órgãos descartáveis".

A Academia respondeu, pela pena do bispo argentino Marcelo Sánchez Sorondo que a conferência apenas pretende ser "um exercício académico e não um debate sobre tese políticas contrapostas".

Huang notabilizara-se no seu cargo por ter prometido, em 2015, que a China iria deixar de usar órgãos de condenados à morte nas transplantações. A declaração de intenções continua ainda hoje a valer-lhe o aplauso de Francis Delmonico, um professor de cirurgia ao serviço da Academia Pontifícia.

Delmonico afirmou que "a sensibilidade do dr. Huang para a objecção mundial àquela prática impulsionou o seu incansável trabalho pela mudança na China, culminando na proibição, em Janeiro de 2015, do uso de órgãos dos prisioneiros executados".

Mas o mesmo Delmonico, ao prestar depoimento no ano passado perante uma comissão do Congresso dos EUA reconhecera que era impossível dizer se essa prática tinha sido efectivamente eliminada.

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