Mapeamento submarino ajuda a recontar a origem inusitada do arquipélago de São Pedro e São Paulo
IGOR ZOLNERKEVIC
© MARINHA DO BRASIL
Imagem aérea de São Pedro e São Paulo: ilhas formadas por rochas que se originaram a mais de 10 km de profundidade
Thomas Campos conhece o arquipélago de São Pedro e São Paulo como a palma de sua mão. O geólogo recifense, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), já visitou 17 vezes as cinco pequenas ilhas rochosas, cuja área total não cobre um campo de futebol. Suas viagens a esse arquipélago no meio do oceano Atlântico equatorial, distante cerca de mil quilômetros (km) de Natal, na costa brasileira, começaram em 1999, como parte do projeto Proarquipélago, da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (CIRM). Desde 1998, o programa da CIRM mantém os inóspitos rochedos sempre habitados por duas a quatro pessoas – em geral geólogos, biólogos, oceanógrafos ou meteorologistas – que conduzem pesquisas em meio aos outros únicos habitantes das ilhas, as aves viuvinhas e atobás. A atividade científica serve a um objetivo estratégico: pelas leis internacionais, só a presença permanente de cidadãos brasileiros nessas ilhas garante ao país o direito de explorar uma área de 200 milhas náuticas em torno delas – é a chamada zona econômica exclusiva ou ZEE –, em uma região do Atlântico rica em cardumes de albacora, atum e outros peixes de alto valor comercial.
Durante a visita deste ano, Campos mostrou as rochas do arquipélago ao colega italiano Daniele Brunelli, da Universidade de Módena e Régio Emília, na Itália, especialista na geologia do fundo do Atlântico. “You kill me!”, exclamou Brunelli, diante de rochedos de peridotito, uma rocha típica da parte superior do manto, região do interior da Terra situada a 6 km abaixo do assoalho oceânico – as rochas do manto raramente afloram à superfície do planeta. Brunelli já vira esse tipo de rocha antes no Atlântico, mas da janela de submarinos, explorando fendas a mais de 4 km de profundidade no mar. De todas as ilhas oceânicas do mundo, só as de São Pedro e São Paulo são feitas de rochas que vieram do manto superior para a superfície – e continuam conectadas ao manto.
Entre janeiro e fevereiro de 2013, Campos e Brunelli participaram do Cruzeiro Colmeia, uma expedição a bordo do navio francês L’Atalante, integrando uma equipe de pesquisadores europeus e brasileiros coordenada por Márcia Maia, geofísica ligada ao Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), da França. A missão da viagem, concebida por Márcia e pela oceanógrafa Susanna Sichel, da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, foi mapear centenas de quilômetros do relevo submarino em torno do arquipélago usando sonares de alta precisão e outros equipamentos geofísicos. A partir dos dados coletados na viagem, Márcia e sua equipe imaginam ter elucidado o mistério de como essas ilhas começaram a se erguer do fundo do mar há 11 milhões de anos.
As conclusões desse estudo, apresentadas em julho na revista Nature Geo-science, resolvem um enigma geológico de quase 200 anos. Em 1832, o naturalista inglês Charles Darwin foi um dos primeiros exploradores a notar que as rochas desse arquipélago não eram de origem vulcânica, como as de Fernando de Noronha. Assim como a maioria das ilhas oceânicas do planeta e a base rochosa dos oceanos (crosta oceânica), Fernando de Noronha é formada por camadas de rochas originadas da atividade vulcânica, como o basalto e o gabro. “Ao longo do século XX ficou claro que as rochas de São Pedro e São Paulo eram diferentes e vinham diretamente do manto terrestre”, explica Márcia. “Mas ninguém entendia como elas haviam se elevado quase 10 km e despontado acima do nível do mar”, conta a geofísica brasileira.
Após se graduar na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) em 1983, Márcia fez sua carreira científica na França, estudando ilhas e regiões submarinas do Pacífico, do Índico e do Atlântico. Ela explica que, enquanto trechos da litosfera dos continentes podem guardar histórias de até 4,5 bilhões de anos atrás, a litosfera dos oceanos é renovada continuamente e permite conhecer o que ocorreu apenas nos últimos 200 milhões de anos.
O Atlântico, por exemplo, começou a se formar 170 milhões de anos atrás. No interior da Terra, quando as rochas do manto superior atingem a temperatura de 1.300 ºC, por volta de 100 a 200 km abaixo da superfície, elas se comportam como um fluido viscoso que se movimenta lentamente ao longo de milhões de anos. Mudanças nas correntezas desse fluido ocorridas por volta de 170 milhões de anos atrás começaram a fraturar o interior do supercontinente Pangea, que se partiria nos pedaços que originaram os continentes atuais. Essa quebra abriu enormes vales no interior de Pangea. Ao subirem em direção à superfície, as rochas do manto sofrem descompressão e fundem parcialmente, originando o magma expelido por vulcões no centro desses vales. À medida que o movimento das placas tectônicas alargava os vales, o assoalho deles era preenchido pelas rochas resultantes da solidificação desse magma. Com o tempo, os vales aumentaram de tamanho e acabaram inundados, gerando um oceano.
Esse processo de abertura do Atlântico continua, com novos pedaços de crosta oceânica sendo formados até hoje. A atividade vulcânica se concentra na Dorsal Mesoatlântica, uma cordilheira de vulcões e falhas tectônicas que se estende de norte a sul do oceano e o divide mais ou menos ao meio. É a crosta oceânica formada ali que faz a costa brasileira se afastar da africana à taxa média de 3,4 centímetros por ano.
A produção de crosta oceânica não é uniforme, entretanto. De norte a sul, a Dorsal Mesoatlântica é recortada por falhas chamadas transformantes, que deslocam o eixo norte-sul da cordilheira ora mais para leste, ora mais para oeste. As maiores falhas transformantes estão no Atlântico Central, onde o eixo norte-sul da dorsal apresenta o seu maior deslocamento. O chamado Sistema São Paulo é um conjunto de quatro falhas que deslocam a Dorsal Mesoatlântica 630 quilômetros para oeste. As cinco ilhas de São Pedro e São Paulo são os picos de uma cadeia de montanhas submarinas com 3,5 km de altura, por 30 km de largura e 200 km de comprimento, localizada na falha mais a oeste do Sistema São Paulo. A serra foi batizada de elevação Atobá, em homenagem às aves locais.
Os sonares do Cruzeiro Colmeia definiram os contornos da elevação Atobá e da falha em que se encontra, complementando um trabalho iniciado em 1998 pela primeira expedição franco-brasileira. Naquela ocasião os pesquisadores usaram o submarino francês Nautile, o mesmo que identificou em 1987 os destroços do Titanic, para explorar o fundo do oceano naquela região. “Foram necessários treze mergulhos para produzir um pequeno perfil da elevação Atobá e coletar amostras das rochas”, lembra Susanna.
Expedições submarinas realizadas nos anos 1980 já haviam observado uma quantidade anormalmente elevada de peridotito no assoalho do Atlântico Central, no lugar das rochas vulcânicas que se esperava encontrar. De modo geral, o fundo dos oceanos é formado por rochas originárias de regiões quentes do manto, que, por causa das altas temperaturas e da redução de pressão, como a que ocorre ao longo da Dorsal Mesoatlântica, liquefazem-se, sofrem transformações e são expelidas pelas fendas e vulcões submersos. A pequena quantidade de rochas vulcânicas encontrada nessa região do Atlântico levou os pesquisadores a supor que, ali, o manto deveria ser mais frio do que em outros pontos do planeta. Parcialmente mantidas em estado sólido por causa das temperaturas mais amenas, essas rochas do manto teriam sido expostas diretamente, quando as forças tectônicas abriram falhas na crosta oceânica da região.
Mais denso que as rochas vulcânicas, o peridotito do manto diminui de densidade ao entrar em contato com a água do mar e reagir quimicamente com ela. A diminuição de densidade, porém, jamais teria força para erguer a elevação Atobá, contam os pesquisadores.
O Atlântico, por exemplo, começou a se formar 170 milhões de anos atrás. No interior da Terra, quando as rochas do manto superior atingem a temperatura de 1.300 ºC, por volta de 100 a 200 km abaixo da superfície, elas se comportam como um fluido viscoso que se movimenta lentamente ao longo de milhões de anos. Mudanças nas correntezas desse fluido ocorridas por volta de 170 milhões de anos atrás começaram a fraturar o interior do supercontinente Pangea, que se partiria nos pedaços que originaram os continentes atuais. Essa quebra abriu enormes vales no interior de Pangea. Ao subirem em direção à superfície, as rochas do manto sofrem descompressão e fundem parcialmente, originando o magma expelido por vulcões no centro desses vales. À medida que o movimento das placas tectônicas alargava os vales, o assoalho deles era preenchido pelas rochas resultantes da solidificação desse magma. Com o tempo, os vales aumentaram de tamanho e acabaram inundados, gerando um oceano.
Esse processo de abertura do Atlântico continua, com novos pedaços de crosta oceânica sendo formados até hoje. A atividade vulcânica se concentra na Dorsal Mesoatlântica, uma cordilheira de vulcões e falhas tectônicas que se estende de norte a sul do oceano e o divide mais ou menos ao meio. É a crosta oceânica formada ali que faz a costa brasileira se afastar da africana à taxa média de 3,4 centímetros por ano.
A produção de crosta oceânica não é uniforme, entretanto. De norte a sul, a Dorsal Mesoatlântica é recortada por falhas chamadas transformantes, que deslocam o eixo norte-sul da cordilheira ora mais para leste, ora mais para oeste. As maiores falhas transformantes estão no Atlântico Central, onde o eixo norte-sul da dorsal apresenta o seu maior deslocamento. O chamado Sistema São Paulo é um conjunto de quatro falhas que deslocam a Dorsal Mesoatlântica 630 quilômetros para oeste. As cinco ilhas de São Pedro e São Paulo são os picos de uma cadeia de montanhas submarinas com 3,5 km de altura, por 30 km de largura e 200 km de comprimento, localizada na falha mais a oeste do Sistema São Paulo. A serra foi batizada de elevação Atobá, em homenagem às aves locais.
Os sonares do Cruzeiro Colmeia definiram os contornos da elevação Atobá e da falha em que se encontra, complementando um trabalho iniciado em 1998 pela primeira expedição franco-brasileira. Naquela ocasião os pesquisadores usaram o submarino francês Nautile, o mesmo que identificou em 1987 os destroços do Titanic, para explorar o fundo do oceano naquela região. “Foram necessários treze mergulhos para produzir um pequeno perfil da elevação Atobá e coletar amostras das rochas”, lembra Susanna.
Expedições submarinas realizadas nos anos 1980 já haviam observado uma quantidade anormalmente elevada de peridotito no assoalho do Atlântico Central, no lugar das rochas vulcânicas que se esperava encontrar. De modo geral, o fundo dos oceanos é formado por rochas originárias de regiões quentes do manto, que, por causa das altas temperaturas e da redução de pressão, como a que ocorre ao longo da Dorsal Mesoatlântica, liquefazem-se, sofrem transformações e são expelidas pelas fendas e vulcões submersos. A pequena quantidade de rochas vulcânicas encontrada nessa região do Atlântico levou os pesquisadores a supor que, ali, o manto deveria ser mais frio do que em outros pontos do planeta. Parcialmente mantidas em estado sólido por causa das temperaturas mais amenas, essas rochas do manto teriam sido expostas diretamente, quando as forças tectônicas abriram falhas na crosta oceânica da região.
Mais denso que as rochas vulcânicas, o peridotito do manto diminui de densidade ao entrar em contato com a água do mar e reagir quimicamente com ela. A diminuição de densidade, porém, jamais teria força para erguer a elevação Atobá, contam os pesquisadores.
© THOMAS CAMPOS / UFRN
Trincas visíveis a olho nu em peridotito coletado no arquipélago: sinais da compressão a que a rocha foi submetida
Perfis das profundezas
Outros dados obtidos na expedição mais recente, os chamados perfis sísmicos, ajudaram a desfazer o mistério. Esses perfis são medidas que indicam como ondas vibratórias atravessam as rochas do interior do planeta e permitem ter uma ideia de como são constituídas. Perfis sísmicos realizados na região do arquipélago revelaram que a elevação Atobá é constituída por peridotitos deformados. Ali, as rochas do manto estão comprimidas entre dois blocos de crosta oceânica – um ao sul e outro ao norte – que estão colidindo frontalmente ao mesmo tempo que um desliza em relação ao outro. Variações no campo magnético terrestre registradas na região indicam também que o coração da elevação Atobá é formado por rochas do manto pouco alteradas pela água do mar – esse núcleo permanece conectado a rochas mais profundas.
Juntos, os perfis sísmicos e a análise da morfologia das falhas permitiram reconstituir a história da elevação Atobá. Márcia e seus colaboradores defendem que a falha mais a oeste do Sistema São Paulo já existia há 38 milhões de anos e que, por volta de 11 milhões de anos atrás, mudanças nas forças tectônicas a teriam expandido, expondo o peridotito do manto. Quase 1 milhão de anos depois, essas forças tectônicas mudaram de direção e passaram a comprimir o peridotito exposto, como manteiga espremida entre duas fatias de pão. “As falhas que vemos nos perfis sísmicos mostram que a rocha está sendo empurrada para cima”, conta Márcia. “A origem da elevação é tectônica.”
Ela defende que o motor da compressão que formou a elevação Atobá é a influência de um ponto quente do manto, situado a 300 quilômetros ao norte do Sistema São Paulo, entre a dorsal e a costa leste da África. Esse ponto quente está associado a uma região de alta temperatura do manto, que teria aumentado a produção de crosta oceânica ao norte da elevação Atobá e garantido a compressão contínua sobre o maciço de peridotito nos últimos 10 milhões de anos. “A ironia da situação é que a elevação do manto que forma o arquipélago de São Pedro e São Paulo não é causada pela temperatura fria do manto na região, mas pela proximidade de uma zona quente.”
Essa explicação é consistente com as fraturas e a estrutura dos grãos de rochas que Thomas Campos observa a olho nu e ao microscópico nos peridotitos do arquipélago. Também combina com as datações que Campos e colaboradores fizeram de fósseis marinhos encontrados por lá. Segundo essas datações, publicadas em 2010 na Marine Geology, os rochedos do arquipélago vêm se elevando 1,5 milímetro por ano nos últimos milhares de anos.
Revista FAPESP
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