quarta-feira, 31 de março de 2010

O tráfico da vida

O tráfico da vida
Na Ásia, a demanda por remédios tradicionais, animais exóticos e iguarias culinárias impulsiona um negócio - legal e ilegal de bilhões de dólares que está esvaziando as selvas, os campos e os mares.
Por Bryan Christy
Foto de Mark Leong

Em uma fazenda de criação no Vietnã, a bile é extraída de um urso-negro-asiático sedado. Milhares de ursos selvagens foram capturados para se obter a bile, usada como medicamento.

Em 14 de setembro de 1998, Wong Keng Liang, um esguio malaio de óculos, desembarcou do voo 12 da Japan Airlines, no aeroporto internacional da Cidade do México. Vestia jeans, paletó azul-claro e camiseta adornada com uma vistosa cabeça branca de iguana. À espera dele estava o agente George Morrison, responsável por uma unidade de elite com cinco agentes, conhecida como Operações Especiais, do Serviço de Pesca e Vida Selvagem, o órgão federal americano que cuida da flora e da fauna selvagens. Poucos segundos após ser detido, Anson (nome pelo qual Wong é conhecido entre os traficantes de animais e os policiais encarregados de combatê-los) foi levado algemado pela polícia federal mexicana à maior prisão do país.

Para Morrison, a prisão de Anson Wong foi uma vitória contra o mais procurado contrabandista de espécies ameaçadas em todo o mundo. Não foi fácil realizar essa façanha, que mobilizou autoridades da Austrália, do Canadá, do México, da Nova Zelândia e dos Estados Unidos, e foi o ponto culminante de uma operação sigilosa que se arrastou por meia década - e ainda é considerada a mais bem-sucedida investigação internacional sobre tráfico de espécies silvestres.

Por muito tempo, e em muitos países (entre os quais os Estados Unidos), não se levou muito a sério a conjunção dos termos "fauna selvagem" e "atividade criminosa". Por isso, os promotores públicos federais queriam conferir à condenação de Anson um caráter exemplar que mostrasse ao mundo que os traficantes de animais são criminosos. Além de acusá-lo com base no Lacey Act, a lei americana contra o tráfico de fauna, também o indiciaram por formação de quadrilha, contrabando e lavagem de dinheiro.

Durante dois anos, Anson lutou para evitar sua extradição para os Estados Unidos, mas acabou por fazer um acordo, confessando crimes que poderiam lhe render uma pena máxima de 250 anos de prisão e multa de até 12,5 milhões de dólares. Em 7 de junho de 2001, foi condenado a 71 meses de prisão em uma penitenciária federal (reconhecendo-se, porém, que Anson já cumprira 34 meses), multado em 60 000 dólares e proibido de vender animais nos Estados Unidos durante três anos após sair da prisão.

Se imaginava que tal pena seria eficaz para coibir as atividades de Anson Wong, o juiz estava equivocado. Logo após Anson ter sido detido, Cheah Bing Shee, sua mulher e parceira de negócios, abriu uma nova empresa, a CBS Wildlife, que passou a exportar animais para a América enquanto o marido estava na prisão. Além disso, a principal empresa de Anson, a Sungai Rusa Wildlife, prosseguiu com suas remessas de animais mesmo após a proibição judicial. E agora que está livre, Anson lançou um novo empreendimento, um zoológico que promete ser a mais audaciosa de todas as suas iniciativas.

O jogo dos números

É quase impossível nomear uma espécie animal ou vegetal, de qualquer parte do planeta, que ainda não tenha sido comercializada - legal ou ilegalmente - em virtude de sua carne, pelo, pele, canto ou valor ornamental, como animal de estimação ou ingrediente de perfumes ou remédios. A cada ano, a China, os Estados Unidos, a Europa e o Japão gastam bilhões de dólares em espécies oriundas das regiões biologicamente mais ricas do mundo, como o Sudeste Asiático.

O caminho até o mercado mundial começa quando caçadores ou lavradores pobres capturam os bichos para mercadores locais que fazem parte de uma cadeia de intermediários. Na Ásia, os animais silvestres acabam nas mesas de banquetes ou em lojas de medicamentos; nos países ocidentais, nas casas de gente que aprecia exibir troféus de animais exóticos. A lógica econômica é tão simples quanto a de um leilão de obras de arte: quanto mais raro o item, mais alto é seu preço. E, como a natureza está acabando, os preços das criaturas mais raras só fazem subir.

Embora ninguém saiba avaliar com exatidão a dimensão desse comércio clandestino, de uma coisa não resta a menor dúvida: é um negócio muito lucrativo. Para evitar apreensões, os contrabandistas escondem a fauna ilegal em meio a carregamentos autorizados, subornam funcionários de órgãos de controle e da alfândega e falsificam documentos de exportação. Poucos chegam a ser capturados, e, mesmo nesses casos, as penas costumam ser brandas. É bem possível que o tráfico de espécies silvestres seja hoje a forma mais lucrativa de comércio ilegal.

Os contrabandistas também se aproveitam de uma brecha na Convenção sobre Comércio Internacional de Espécies da Fauna e da Flora Selvagens em Perigo de Extinção (Cites, na sigla em inglês). Com 175 países signatários, a Cites é o principal tratado mundial para a proteção da fauna selvagem, classificada em três grupos segundo o perigo que corre cada espécie. Os animais incluídos no Anexo I, como os tigres e os orangotangos, são considerados tão vulneráveis à extinção que não podem ser comercializados. Já as espécies do Anexo II não estão assim periclitantes e podem ser negociadas sob um sistema de licenças. Aquelas que constam do Anexo III estão protegidas pela legislação nacional do país que as incluiu na lista. Mas o tratado da Cites tem uma brecha enorme: os espécimes criados em cativeiro não desfrutam da mesma proteção daqueles que vivem em condições naturais.

Os defensores da criação em cativeiro argumentam que essa norma alivia a pressão sobre as populações selvagens, reduz a criminalidade e atende à demanda internacional. Todavia, esses benefícios valem apenas para os países que dispõem de políticas de controle eficazes. Pois, na prática, os contrabandistas montam falsas instalações de criação e depois alegam que animais e plantas recolhidos da natureza foram criados em cativeiro. Essa é apenas uma das técnicas usadas por Anson Wong para criar um negócio de fachada que encobria uma das maiores organizações de contrabando de espécies do mundo.

Agora, o famoso traficante de répteis está se preparando para atuar em nova frente, com consequências catastróficas a um dos animais mais carismáticos e ameaçados do planeta: o tigre.

Operação Camaleão

A equipe de Operações Especiais iniciou a caçada a Anson Wong no fim de 1993. Na década de 1990, começaram a entrar em grande quantidade répteis ilegais nos Estados Unidos. E os preços chegaram às alturas - 20 000 dólares ou mais por uma tartaruga rara ou um dragão-de-comodo. Os répteis são portáteis e fáceis de ser contrabandeados: são pequenos (pelo menos quando filhotes), resistentes e, graças ao metabolismo de sangue frio, suportam longos períodos sem alimento ou água. Valiosos e portáteis, eles eram os diamantes do tráfico de fauna.

Havia anos o nome de Anson Wong era mencionado por informantes, fazendo o pessoal de Operações Especiais desconfiar de que fosse o chefão global do tráfico ilegal de répteis. Anson já era procurado nos Estados Unidos pelo envio ilegal de répteis raros para um negociante da Flórida, no fim dos anos 1980. Sabia-se que ele tinha plena consciência de que era visado. Portanto, seria muito difícil obter um flagrante. A equipe teria de inventar algo mais inteligente.

O agente especial Morrison - com 2 metros de altura, ele é caçador desde a infância e filho de advogado - foi colocado no comando da operação. Ele e seu superior, o agente especial Rick Leach, alugaram um espaço em um complexo comercial fora de San Francisco. Para montar o estoque da nova companhia atacadista, chamada Pac Rim, recorreram a mercadorias que tinham à mão, um carregamento de conchas marinhas e corais que restara de investigações anteriores: conchas estriadas de moluscos bivalves, conchas espiraladas de troquídeos, corais duros - o tipo de traste branco e rosado vendido em lojas para turistas em cidades litorâneas. Anunciaram os produtos em revistas e, quando chegavam encomendas legítimas, os veteranos agentes arregaçavam as mangas e tratavam eles mesmos de embalar e remeter os itens pedidos.

Para complementar as operações da Pac Rim, abriram também uma empresa varejista, a Silver State Exotics, na periferia de Reno, no estado de Nevada. Isso permitiu aos agentes fechar todo o circuito econômico - poderiam fazer importações volumosas de animais por meio da Pac Rim e passar adiante o que não iriam usar à Silver State Exotics, conferindo à Pac Rim a aparência - e o faturamento - de um próspero empreendimento global. Em 19 de outubro de 1995, Morrison enviou um fax à empresa de Anson, a Sungai Rusa Wildlife, dizendo que era atacadista de conchas e corais, mas estava interessado em explorar o negócio de répteis e anfíbios. Anson enviou a ele uma lista de preços de uma página, oferecendo rãs e sapos de baixa qualidade por menos de 5 dólares e lagartos domésticos por 30 centavos, listados por seus nomes científicos. Em um caso, Anson usou o próprio nome para identificar uma subespécie: ansoni. Dois animais, porém, se destacavam na relação: a tartaruga-nariz-de-porco e o lagarto-dragão-australiano, ambos protegidos em seu âmbito natural, que inclui Papua-Nova Guiné, Indonésia e Austrália. Portanto, já no contato inicial com Morrison, de quem nada sabia, Anson não se furtou a acenar com amostras de espécies ilegais.

Logo em seguida, Anson ofereceu a Morrison alguns dos répteis mais raros do Anexo I da Cites: dragões-de-comodo da Indonésia, tuataras da Nova Zelândia, aligátores-chineses e tartarugas-de-esporão de Madagáscar. Graças a um funcionário corrupto da empresa FedEx, Anson mandou pelo correio espécimes protegidos a endereços falsos criados pelos agentes. Da Malásia, enviou dragões-de-comodo para Morrison escondidos em malas levadas por um portador, James Burroughs. Também mandou tartarugas-raiadas embaladas em meias pretas no fundo de carregamentos legais de répteis.

Morrison ficou assombrado com a engenhosidade de Anson. Era capaz de intermediar um negócio com tartarugas do Peru, sem jamais chegar perto delas. Contratou caçadores para invadir um santuário de fauna selvagem na Nova Zelândia. Controlava uma empresa que comerciava espécies selvagens no Vietnã. E vangloriava-se de assegurar o bom termo de seus negócios com a ajuda de capangas chineses.

Notável também é o modo como explorava a brecha da Cites referente à criação em cativeiro, alegando que essa era a origem dos animais que exportava. Num de seus esquemas, Anson enviou tartarugas-estrela-indianas por Dubai, afirmando que haviam sido criadas em cativeiro. Quando o endereço foi checado, descobriu-se que no local funcionava uma floricultura.

Anson tranquilizou Morrison dizendo que não havia nada a temer das autoridades da Malásia. No país, o contrabando é policiado pelos agentes aduaneiros e pelo Perhilitan, o Departamento de Fauna e de Parques Nacionais. Sobre seu portador, Anson disse: "O segundo no comando na alfândega vai buscá-lo no aeroporto".

Em uma ocasião, Anson ofereceu a Morrison 20 pítons-timorenses por 15 000 dólares. Morrison respondeu que estava interessado, mas temia que as serpentes viessem sem a documentação da Cites. "Não se preocupe", replicou Anson. "Um de meus homens vai ser detido com o carregamento. O material será apreendido e, depois, vendido para mim pelo departamento."

Em seguida, Anson ofereceu a Morrison cornos de rinocerontes-de-sumatra e de-java, dois animais incluídos no Anexo I. Ele tinha acesso a aves extraordinárias, entre as quais o mainá-de-rothschild, cuja população selvagem se estima que seja menor que 150 espécimes. E vangloriava-se de suas ararinhas-azuis, uma ave brasileira que se considera extinta em condições naturais, alegando que recentemente vendera três delas. No mercado negro, uma ararinha valia na época 100 000 dólares. Sua lista cada vez maior de raridades ilegais incluía até mesmo pele de pandas-gigantes e de leopardos-das-neves.

Considerar Anson apenas um traficante de répteis havia sido um erro, permitindo que ele se movimentasse livre pelo mundo. "Consigo qualquer coisa em qualquer lugar", escreveu para Morrison. "Tudo depende de quanto se paga a certas pessoas. Se você me disser o que quer, eu avalio os riscos e digo quanto vai lhe custar."

"Nada pode me atingir", vangloriou-se ele. "Posso vender um panda - e nada acontece. Enquanto estiver aqui, estou seguro."

Por fim, após cinco anos e meio milhão de dólares gastos em aquisições ilegais, Morrison estava pronto para investir contra a "Fortaleza Malásia" - a base de operações de Anson. Propôs que Anson se juntasse a ele em um novo empreendimento, especializado nos animais mais raros do planeta. "Cheguei a um ponto em que as pessoas preferem me oferecer primeiro o que têm, antes de ir em busca de outros compradores", disse o traficante. Ele estava interessado.

Morrison sugeriu que começassem pelo contrabando de bile de urso, um ingrediente de remédios tradicionais chineses. Anson disse que havia muita demanda na China e na Coreia do Sul. "Mas não se esqueça", alertou Morrison, "de que não vou vender diretamente - é perigoso." Em vez disso, ele usaria um intermediário.

Morrison replicou que também tinha uma parceira que poderia conseguir a bile no Canadá, mas que só faria negócios com Anson depois de conhecê-lo pessoalmente. Anson mostrou-se relutante. "Podemos nos encontrar em qualquer lugar aqui na Ásia", escreveu Anson. Ou então na Argentina, na África do Sul, no Peru, na França ou na Inglaterra. "Mas não na Nova Zelândia", estipulou, "nem na Austrália."

Por fim, marcaram um encontro no México.

A fênix malaia

Com a detenção de Anson Wang em setembro de 1998, o Serviço de Pesca e Vida Selvagem americano deu por concluída sua missão, mas é possível que tenha perdido a guerra. "Concentramos tudo em um único objetivo", contou-me George Morrison. Exausto, ele abandonou o trabalho clandestino. Rick Leach, o supervisor, aposentou-se, e em seguida o grupo de Operações Especiais praticamente encerrou suas atividades.

Cinco anos depois, em 10 de novembro de 2003, Anson recuperou a liberdade. Os jornalistas acorreram à Malásia, instalaram-se diante da sede da empresa de Anson, em Penang, uma ilha ao largo do litoral oeste, e tentaram fotografá-lo. Anson recusou-se a falar com os repórteres.

Na época, a Malásia estava envolvida em um escândalo de contrabando de gorilas-das-planícies, outra espécie à beira da extinção. Os traficantes haviam usado o zoo da universidade nigeriana de Ibadan como fachada para vender quatro filhotes de gorila, capturados nas florestas de Camarões, ao zoológico Taiping, na Malásia. Esse incidente provocou protestos internacionais e ficou conhecido como os "Quatro de Taiping". Em meio à comoção gerada pelo caso, Anson sentou-se diante de seu computador e enviou uma mensagem para o Vorras.net, um site frequentado por mercadores de fauna silvestre: "Precisamos de primatas nigerianos. Favor enviar preços para entrega na Malásia".

Anson estava de volta aos negócios.

Para dizer a verdade, jamais havia se afastado. Enquanto cumpria sua pena, Cheah Bing Shee continuou no comando da operação. Na sua volta, Anson passou a frequentar sites buscando répteis da Índia, de Madagáscar e do Sudão; insetos de Moçambique; e "10 toneladas por mês" de chifres de carneiro. E ofereceu aos interessados ampla gama de espécimes selvagens, entre as quais répteis malaios, mainás, papagaios, assim como um carregamento de meio milhão de dólares de madeira-de-agar, muito valorizada por suas qualidades aromáticas. A um pedido de mamíferos e aves mortas, ele respondeu: "Sempre temos em estoque".

O que atraiu minha atenção para Anson foi um comentário feito de passagem por Mike Van Nostrand, dono da empresa Strictly Reptiles, da Flórida, uma das maiores atacadistas de répteis do mundo, e também uma das maiores clientes de Anson. Eu estava escrevendo um livro sobre o passado de Van Nostrand como contrabandista de répteis. "Duas semanas depois de ter saído da prisão", contou-me Van Nostrand no verão de 2004, "Anson ofereceu-me algo que na verdade ele não poderia ter." Era um varano-de-gray, um lagarto frugívoro das Filipinas que havia sido considerado extinto até o fim da década de 1970, e um dos animais pelos quais Anson fora condenado. Van Nostrand, que também já cumprira pena por contrabando de répteis, e não queria repetir a dose, ficou chocado. "Você não desiste", respondeu ele na época.

Em setembro de 2006, aluguei um apartamento na Flórida e comecei a trabalhar na Strictly Reptiles. Passei três meses no depósito, varrendo o chão, limpando jaulas e desembalando carregamentos de répteis - entre os quais os enviados por Anson -, tudo isso para fazer uma única pergunta a Van Nostrand: "Você me apresenta a ele?" Fui acusado por outros funcionários de ser agente federal. Eles me fotografaram, fui ameaçado e apontaram um revólver .357 contra a minha cabeça. No fim, ficamos amigos. Poucos dias antes de terminar o contrato de aluguel de meu apartamento, fiz de novo a pergunta. "Claro", respondeu ele. "Anson vai conversar com você. Ele adora falar de si mesmo."

Dentro da fortaleza

Situada na elegante área de Pulau Tikus em Penang, a Sungai Rusa Wildlife poderia ser confundida com um salão de beleza. Com a mesma largura de uma garagem familiar e sem qualquer placa de identificação, é mais um dentre as dezenas de negócios em uma tranquila rua de lojas que oferecem dietas de emagrecimento, tratamentos de pele e cuidados com o corpo. Quando cheguei, em 2 de março de 2007, um BMW preto e um furgão fechado ostentando o endereço da fazenda de criação de répteis mantida por Anson em Penang estavam parados diante do local.

Anson cumprimentou-me com aquele aperto de mão extraforte que costumam dar certos homens. Em seguida, conduziu-me, por entre pilhas de caixas de plástico com tarântulas vivas, papéis soltos e caixas de papelão para envio postal, até o seu escritório, uma sala atulhada e sem janelas. Embora tenha anunciado na internet que sua empresa fatura de 50 milhões a 100 milhões de dólares por ano, o que havia de mais caro na sala era o celular sobre sua mesa.

Depois de me acomodar numa cadeira, Anson apontou três grupos de fotos coladas na parede do escritório. "Minha mulher colocou isso aí para que eu nunca me esqueça de perguntar se valeu a pena", comentou. "Bonitas, não?"

Eram fotos de tartarugas-raiadas que ele havia contrabandeado, e cada uma delas trazia um carimbo do tribunal federal da Califórnia. Embora possam ser um lembrete a Anson ali colocado por sua mulher, as fotos também são um aviso a todos os que adentram aquele recinto: eu, Anson Wong, enfrentei um dos mais duros processos judiciais do mundo e aqui estou em liberdade.

Ele tinha uma enganosa aparência de menino. Usava óculos grandes e redondos, e o cabelo, preso num rabo, estava salpicado de fios cinzentos. Com 49 anos, seu rosto não revelava nenhuma tensão. Ele tinha o ar cultivado de um artista bem-sucedido, talvez um escultor, e falava inglês com perfeição com um agradável sotaque britânico. Atrás de sua cabeça havia um mapa-múndi. E, atrás de mim, dormia uma píton-reticulada, a maior dessas serpentes.

Anson contou que havia entrado no negócio de espécies silvestres durante a década de 1980, ao fundar a empresa Exotic Skins and Alives. Naquela época, disse ele, a Malásia somente protegia a fauna selvagem endêmica. Por isso ele negociava espécies ameaçadas de outras parte do globo. Anson sorriu. "De tudo", declarou.

Disse a ele que estava escrevendo um livro sobre o seu cliente americano Mike Van Nostrand, que também havia brincado de gato e rato com o Serviço de Pesca e Vida Selvagem. "Você é o principal cara na Ásia", disse eu. "Segundo Mike, se não fosse por Anson Wong, não haveria negócios com répteis nos Estados Unidos."

Anson mencionou um concorrente na Indonésia e outro em Madagáscar. Riu e balançou a cabeça. "Bem, acho que não somos muitos."

A fauna silvestre é parte da economia de todos os países asiáticos, prossegui, e o que me interessa é a linha divisória entre o homem e a natureza. "Ahhh", disse ele. Ergueu os braços e opôs os dois punhos fechados. "Sempre em conflito."

Choque futuro

"Agora estou construindo outro zoo", afirmou ele, apontando um documento de 30 páginas sobre a mesa, intitulado "Anson Wong, Aldeia de Flora e Fauna". "O projeto foi aprovado ontem." Comecei a folhear o calhamaço, repleto de desenhos arquitetônicos.

Os sócios de Anson eram sua mulher e Michael Ooi, um negociante de orquídeas de renome internacional. (O irmão de Michael, Gino, controla a maior instituição de aves raras da Malásia.) Durante anos o casal Wong e Michael Ooi haviam mantido um zoo em Penang, o Jardim de Orquídeas, Hibiscos e Répteis Bukit Jambul.

Os zoológicos são ótimos disfarces. Os contrabandistas que controlam um zoo podem movimentar espécies ameaçadas com a papelada da Cites, e os programas de criação locais explicam o aparecimento de um espécime. Em geral, a Cites não se preocupa com o que acontece com um animal depois que ele é importado por um zoo: assim, um gorila pode ser vendido a um particular ou, se morrer (ou for morto), pode ser retalhado, sendo a carne ou as partes vendidas ou consumidas, ou então acabar empalhado.

Anson me contou que o novo zoológico iria superar o Bukit Jambul. Ele iria expor répteis e pretendia cobrar pouco dos visitantes, mas mesmo assim contava ganhar muito dinheiro. Ele tinha agora novo foco de interesse: os grandes felinos. "Adoro os tigres", disse ele. "Criação em cativeiro", sorriu, "é aí que está o futuro."

Ergui os olhos como se tivesse tomado uma injeção de adrenalina. Os tigres estão quase extintos na natureza, restando apenas uns 4 mil espécimes. E agora Anton Wong planejava concentrar suas atividades nesses animais.

Há um valioso mercado negro para tigres.

Os tibetanos usam túnicas de pele de tigre; ricos colecionadores exibem sua cabeça como troféu; restaurantes de comida exótica vendem carne de tigre; seu pênis é tido como afrodisíaco; e os chineses usam seus ossos em tratamentos médicos, entre os quais vinho de osso de tigre, a "canja de galinha" da medicina chinesa. O valor no mercado negro de um macho adulto morto gira em torno de 10 000 dólares. Em alguns países asiáticos, atrações turísticas conhecidas como "parques de tigres" funcionam como fachada para o manejo de tigres - os animais em cativeiro são abatidos e retalhados, e, além disso, também constituem um mercado em potencial para os caçadores clandestinos de tigres selvagens.

Anson tem uma história tenebrosa com os grandes felinos. Durante a Operação Camaleão, ele chegou a solicitar a ajuda de Morrison para fazer com que os tigres que criava em cativeiro fossem abatidos e preparados para ser vendidos como troféus. Também havia proposto contrabandear um puma, e queria que Morrison achasse comprador para um gato-marmoreado, uma espécie incluída no Anexo I. Após sair da prisão, os filhotes de tigre mantidos por ele foram localizados na vitrine de uma loja de animais em Kuala Lumpur. Apesar de tudo, Anson já estava acostumado a driblar as proibições graças à obtenção de "licenças especiais", concedidas a particulares, parques de diversão e zoos.

Então ele lançou um olhar à bolsa que eu trazia no ombro. "George Morrison gravou tudo", comentou enquanto se erguia. "Estou muito ocupado", disse, indicando seus próximos compromissos: Taipé, Hong Kong, Tailândia. Enquanto me acompanhava até a saída, comentou: "Quando você acabar seu livro, precisamos conversar sobre a minha história".

Foi aí que cometi um erro. Contei a ele que havia escrito um artigo expondo um acordo duvidoso entre o governo americano e um negociante britânico de moedas para vender a moeda mais valiosa do mundo - que havia sido roubada - e dividir os lucros. Em geral, contar a um ex-condenado que você deixou as autoridades em maus lençóis é uma jogada certa para consolidar o relacionamento. Mas naquele momento me esqueci da premissa da Operação Camaleão: Anson mantinha excelentes relações com o governo de seu país. Ele fitou-me. "Ah, então você é jornalista", disse ele, mais tenso.

Aparentemente, Anson havia me confundido com um biógrafo. Tentei consertar a situação, mas ele me interrompeu. "Jornalistas que expõem aquilo que as pessoas preferem deixar de lado podem acabar mortos", disse com voz bem calma.

Kecik-kecik cili padi

Certo dia, no fim de dezembro de 2007, o Mercedes-Benz preto de Anson estacionou no aeroporto internacional de Penang e ali recolheu duas das principais autoridades encarregadas da proteção da fauna na Malásia: o diretor da divisão de fiscalização do Perhilitan, Sivananthan Elagupillay, e sua chefe, a vice-diretora-geral do órgão, Misliah Mohamad Basir. Ambos haviam chegado de Kuala Lumpur para a coletiva de imprensa que marcaria o lançamento do Aldeia de Flora e Fauna, agora um empreendimento conjunto do departamento florestal de Penang e da empresa controlada por Anson Wong e Michael Ooi. O zoo seria montado em uma área de 2 hectares na Reserva Florestal de Teluk Bahang e, para sua viabilização financeira, o governo estadual de Penang contribuíra com 700 000 ringgit (200 000 dólares). No jornal malaio The Star, uma foto mostrava as autoridades inspecionando a área onde ficaria o novo tigre. "O valor da entrada será bem acessível, pois nosso objetivo é contribuir para a preservação de espécies ameaçadas", declarou Ooi aos jornalistas.

Anson sempre havia se vangloriado de seus contatos no governo. Agora contava com o apoio explícito tanto do governo de Penang como do departamento de fauna da Malásia, o Perhilitan. A presença de Misliah ali era irônica. Na época da Operação Camaleão, ela era a encarregada do Perhilitan em Penang, e a responsável por conceder as licenças relacionadas com a Cites. Durante os quatro anos em que Anson cumpriu sua pena, ela foi promovida ao cargo de diretora da divisão de fiscalização e, em 2007, tornou-se a segunda pessoa mais importante do órgão.

Minha curiosidade era saber qual seria a opinião de Misliah sobre o indivíduo que havia contrabandeado tantos animais ameaçados bem debaixo de seu nariz. "Ele é um grande amigo meu", disse ela com uma risadinha, acomodada à mesa de seu espaçoso gabinete na sede do Perhilitan. Ela era uma mulher baixinha e bem fornida, pouco mais que uma cabeça redonda envolta em um tudung branco, o lenço usado pelas muçulmanas. Um xale azul-celeste recobria o baju kurung, uma túnica longa com sarongue, e calçava diminutas sandálias marrons. E a voz dela era, sinceramente, a mais doce que eu já ouvira.

Haviam me avisado que Misliah tinha dois preconceitos: não gostava de americanos, e achava que todos eles estavam obcecados por Anson Wong. "Como a senhora deve saber", eu disse logo de saída, "sou americano. E, quando se trata da Malásia e da fauna selvagem, nos Estados Unidos a gente sempre ouve a mesma história."

"E que história é essa?", perguntou ela com afabilidade. Eu sorri. "Anson Wong."

Misliah voltou a dar sua risadinha. Ela entrara no Perhilitan no início da década de 1980, mais ou menos na época em que Anson começara a negociar répteis, e havia permanecido em Penang durante a maior parte da carreira. "Passei mais de dez anos fazendo inspeções nas remessas dele", contou ela. Tentei imaginar Misliah, com um pé-de-cabra, abrindo os caixotes repletos de gecos-tokay, serpentes-boigas e outros animais agressivos e ameaçadores que Anson chamou de "espécies encobridoras", pois costumava colocá-las por cima das caixas com espécies ilegais.

No princípio, ela não entendia muito de répteis, disse, mas agora era diferente. "Tudo o que sei sobre eles aprendi abrindo as caixas de Anson." Misliah desviou o olhar para as estantes do gabinete. Embora não o tenha visto muito desde que se mudou para Kuala Lumpur, de tempos em tempos ela continuava a lhe pedir emprestado livros para a identificação de aves. E, quando seus subordinados não conseguiam reconhecer um animal, ela fazia com que ligassem para Anson. "Não há ninguém tão bom para identificar animais selvagens; não vejo por que não recorrer a ele", disse. "Ele é o mais competente do país."

Notei então que Misliah raramente piscava.

"Ele é muito esperto", prosseguiu ela, explicando que Anson trata todos os seus negócios por telefone. "Na Malásia, a gente precisa surpreender a pessoa com os animais. Não é como nos Estados Unidos com o Lacey Act", disse.

O Lacey Act transformou em crime federal a transgressão das leis de proteção à fauna selvagem, mesmo aquelas de outro país, e um contrabandista não precisa ser flagrado com o animal para ser indiciado. Misliah considera ilegítima a condenação de Anson sob o Lacey Act e chegou a denunciar o Serviço de Pesca e Vida Selvagem de o ter incriminado falsamente.

"Disseram que ele tinha dragões-de-comodo, mas ele jamais mexe com animais - tem muita gente que faz isso em seu lugar", disse Misliah. "Quando estava preso, Anson me escrevia cartas. Ele sobreviveu graças a subornos. Eles o trataram como um rei!" Ela explicou então que os negócios dele haviam sido muito prejudicados enquanto estava na prisão, e sua mulher teve de assumir o comando. "Mas agora", prosseguiu Misliah, "as coisas estão melhorando."

A segunda maior autoridade encarregada da aplicação das leis de proteção da fauna da Malásia fala do mais notório traficante de espécies de seu país como uma tia preocupada com o sobrinho: "As pessoas dizem ‘Como pôde dar a ele uma licença? Ele foi um menino muito mau, mas, se não déssemos a licença, mesmo assim ele continuaria agindo’". Dessa maneira, segundo ela, é mais fácil mantê-lo sob controle.

Até hoje Misliah defende Anson. "Anson Wong realizou seus negócios de maneira legal, cumprindo os requisitos e as normas das leis internas. Ele e suas atividades na Malásia peninsular estão sendo acompanhados por este departamento", afirmou seu gabinete em nota à imprensa em 2008. E ela também é favorável à legalização do manejo de tigres e de bile de urso. "Por que não?", perguntou-me ela própria.

Misliah Mohamad Basir, tão discreta e aparentemente tão benigna, é uma das autoridades mais poderosas do planeta no que se refere à fauna selvagem. E, sob seu mandato, a Malásia tornou-se um dos centros do tráfico global.

Fiz questão de insistir em quão agradável ela era pessoalmente. "Misliah não é a mulher mais doce que já conheceu?", perguntei a um alto funcionário do Perhilitan.

Ele fitou-me por um instante e sorriu. "Aqui no departamento temos um ditado para nos referir a ela: ‘Kecik-kecik cili padi’", disse. Um guarda-florestal que estava ao lado assentiu com a cabeça. "As menores pimentas são as mais fortes."

Precisa-se de xerife

Quando a entrevistei, Misliah mencionou, como sendo um adversário, Chris Shepherd, um intrépido investigador que vem chamando a atenção para o mercado negro de espécies silvestres em todo o Sudeste Asiático. "Ele diz que nosso país é apenas uma escala", comentou Misliah, com desprezo evidente. "Diz que não fazemos nada para interromper o contrabando."

O canadense Shepherd trabalha para o Traffic, o departamento de investigação das organizações não-governamentais Fundo Mundial para a Natureza (WWF) e União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCF). Com sede em Cambridge, na Inglaterra, e escritórios por todo o mundo, os investigadores do Traffic monitoram atividades criminosas e transmitem o que descobrem aos órgãos encarregados de aplicar a lei nos países. Shepherd coordena o escritório responsável pelo Sudeste Asiático, em Petaling Jaya, na Malásia. Ao longo da última década, ele publicou uma montanha de relatórios sobre o comércio ilegal de partes de ursos, elefantes, civetas, tartarugas-raiadas, serows-de-sumatra, tigres-de-sumatra e outros animais. Seus relatórios ajudam conservacionistas e órgãos de proteção da fauna em todo o mundo.

Ao visitar Shepherd, peço a ele que me mostre seu dossiê sobre Anson Wong. Estou curioso. Ele me fita com um olhar vago. Abre um de seus arquivos e de lá tira uma pasta fina de uma gaveta semivazia. Depois de folhear algumas páginas, balança a cabeça.

Nenhum dos investigadores de organizações não-governamentais, nem mesmo Shepherd, jamais vira Anson Wong. Vezes sem conta topei com especialistas ansiosos para me mostrar atrocidades: filhotes de urso no Vietnã mergulhados em água fervente a fim de intensificar a "força vital" da sopa de pata de urso, orangotangos presos com correntes nos quintais de generais indonésios, aves quase extintas vendidas abertamente em mercados. Mas, quando indagava quais conexões poderiam ser estabelecidas entre essas cenas e organizações criminosas, ninguém podia citar um único exemplo de um grupo investigado com as minúcias a que estamos acostumados a ver em qualquer filme policial barato.

"O cérebro deles todos funciona como uma câmera", foi o comentário que ouvi de George Morrison. As ONGs, seus doadores e a imprensa tendem a se concentrar nos crimes contra os bichos de maior visibilidade, ao passo que as organizações criminosas multinacionais atuam invisíveis por trás de massas de registros corporativos, licenças da Cites e dados comerciais.

Além disso, os funcionários das ONGs contam com pouco tempo para cumprir tudo o que precisam fazer: levantamento de recursos financeiros, produção de relatórios sobre as espécies, divulgação na imprensa, encontros com doadores e tarefas administrativas. As ONGs não podem fazer o trabalho da polícia. Elas não têm autoridade para aplicar a lei, e seus funcionários precisam de vistos que podem ser cancelados dependendo de seu relacionamento com as autoridades. Se as ONGs vão longe demais, podem virar alvo de represálias. Em 2008, o Traffic divulgou um relatório sobre o comércio de órgãos de tigre em Sumatra e solicitou que as autoridades indonésias aumentassem sua vigilância. O resultado foi que a Indonésia congelou as atividades do Traffic, uma iniciativa que equivale à expulsão. Tonny Soehartono, o ministro de Recursos Florestais e responsável pela decisão, assim justificou a medida: "O Traffic atacou o meu país".

O próprio Traffic dispõe apenas de três investigadores para cobrir o Sudeste Asiático, e só uma centena deles em todo o mundo.

O secretariado da Cites conta com um só funcionário - uma única pessoa - para a fiscalização do acordo. A Interpol também conta com apenas uma pessoa para cuidar de seu programa de combate aos crimes contra a fauna. Outros países dispõem de instrumentos úteis, como autorização para gravar conversas telefônicas, mas não desfrutam da amplitude do Lacey Act.

Em uma comissão do Congresso americano que examinava os vínculos entre segurança nacional e tráfico de animais silvestres, conheci uma mulher doutora em veterinária que havia ajudado a preparar parte do material de apoio para as discussões. "Quero ir trabalhar disfarçada no Sudeste Asiático", contou-me ela. Fiquei impressionado: uma jovem profissional disposta a viver a vida de um investigador clandestino.

Misliah não gosta de Shepherd porque as críticas dele aparecem no noticiário, mas na verdade a imprensa só leva adiante casos que envolvam animais emblemáticos e recebam nomes atraentes, como os "Quatro de Taiping" ou os "Seis de Bangcoc" (seis filhotes de orangotango apreendidos). O mesmo não ocorre quando se trata de um mero peixe-napoleão ou das 14 toneladas de tartarugas, varanos e pangolins achados em um barco abandonado na costa da China.

Um motivo de esperança pode ser uma nova organização regional, a Rede de Fiscalização da Fauna Selvagem da Associação dos Países do Sudeste Asiático (Asean-WEN, na sigla em inglês). Criada há quatro anos, a Asean-WEN reúne agentes alfandegários, promotores públicos e policiais de todos os dez países integrantes da aliança. Austrália, Nova Zelândia e Estados Unidos participam, e grande parte dos recursos vem da Usaid, o órgão federal americano voltado para a promoção do desenvolvimento internacional. Uma prova do potencial da Asean-WEN é o fato de que o próprio Anson Wong assina o boletim publicado pelo novo órgão.

Em agosto de 2009, Misliah respondeu às alegações de que havia um relacionamento impróprio entre seu departamento e Anson Wong: "No que se refere à Malásia, ele respeita as leis e tem as licenças necessárias", afirmou. "O que ele faz em outros países não é da nossa conta."

National Geographic Brasil

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