quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Separatismo na Geórgia: Considerações Geopolíticas e Etnicidades



por Adalgisa Bozi Soares


Desde o fim da União Soviética, a Geórgia tem sido palco de conflitos separatistas, principalmente nas regiões da Ossétia do Sul e da Abkázia. À primeira vista, a situação entre essas regiões e a Geórgia poderia ser vista como um conflito intraestatal resultante dos princípios às vezes antagônicos da auto-determinação dos povos e da soberania estatal. No entanto, o apoio da Rússia às duas das regiões separatistas demonstra a grande importância geopolítica e estratégica da questão. Dada a complexidade da situação, uma abordagem sistêmica deve ser complementada com outros elementos, entre eles a animosidade entre as diversas etnias.

Breve história do conflito
A desintegração da União Soviética desencadeou a crise no Cáucaso. Em 1992, a população da Ossétia do Sul manifestou, por meio de um referendo, o desejo de separação em relação à Geórgia e integração à Federação Russa, para que pudesse se unir à Ossétia do Norte. O referendo não foi reconhecido pela Geórgia, que respondeu com uma invasão militar à província. O cessar fogo foi assinado, e uma série de protocolos adicionais criaram a Comissão de Controle Conjunta (Joint Control Comission - JCC), formada pela Geórgia, Rússia e Ossétias no Norte e do Sul, observada pela Organização para Segurança e Cooperação da Europa (OSCE), além da Força Conjunta de Peacekeeping, com unidades russas, ossetianas e georgianas. Desde então, o envolvimento da Rússia na região tem sido crescente, indo desde auxílio econômico até emissão de passaportes russos aos habitantes da Ossétia do Sul.
O desenvolvimento da situação da Abkásia foi um pouco distinto. A princípio, a Abkásia propôs o arranjo de federação ou confederação em relação à Geórgia, proposta esta que foi ignorada pelo governo georgiano. As tentativas de obter maiores liberdades em relação ao governo da Geórgia não cessaram, até que, em 1992, tropas da Geórgia atacaram a Abkásia. Durante o processo de reconquista da região abkaz foi promovida uma verdadeira limpeza étnica em relação aos georgianos, de forma que os abkazes, até então minoria na região, passaram a ser maioria. Para a observação do cessar fogo, assinado em 1994, foram criadas uma força de Peacekeeping da Comunidade dos estados Independentes e a Missão de Observadores Militares das Nações Unidas na Geórgia, a UNOMIG.


Embora diferentes, as situações se assemelham principalmente no que tange o envolvimento russo. Durante o período mais violento dos conflitos, no início da década de 90, a participação da Rússia foi velada, embora não fosse propriamente um segredo. Na Abkásia, que possui uma indústria turística bem desenvolvida e instituições democráticas desenvolvidas, a Rússia tem servido de apoio para a manutenção da separação, na prática, em relação à Geórgia. Na Ossétia do Sul, a intervenção Russa é mais direta, principalmente porque, para a região, a independência em relação à Geórgia significaria a integração à Rússia, por meio da unificação com a Ossétia do Norte.
Com a abertura do precedente legal para o reconhecimento de regiões separatistas, após o caso do Kosovo, a Rússia tem reforçado a necessidade de reconhecimento da independência das duas regiões, inclusive estabelecendo laços jurídicos com a Abkásia e a Ossétia do Sul, o que causou protestos do governo de Tbilisi.

Geopolítica e estratégia russa
O fim da Guerra Fria representou uma grande ruptura com o sistema que parecia consolidado por grande parte do século XX. Durante esse longo período, os anseios separatistas das regiões da Geórgia permaneceram congelados. A principal característica do sistema na época, a existência de duas superpotências em equilíbrio militar, contribuiu para que essa situação assim se mantivesse. Em decorrência de tal equilíbrio, as duas superpotências enfrentavam-se indiretamente. Um conflito separatista no seio da URSS poderia ser a brecha para um enfrentamento direto entre os dois sistemas existentes, o que explica, de certa forma, o congelamento dos conflitos separatistas durante a Guerra Fria.
Com a mudança do sistema internacional no início da década de 90, ou seja, com o desaparecimento da superpotência do Leste, a esfera de influência da Rússia foi ficando cada vez menor, o que desencadeou ações russas para reverter esse quadro. A medida em que a influência russa diminuía no território georgiano, a Rússia foi aumentando sua participação nos conflitos separatistas da Abkásia e na Ossétia do Sul. Após 2003, o ano que marcou a guinada em direção ao Ocidente na Geórgia, com a Revolução da Rosa, as relações entre Geórgia e Rússia têm se deteriorado rapidamente.
Tal situação se insere em um contexto mais amplo de questionamento, por parte da Rússia, de sua posição no sistema. Se considerarmos que tal posição é determinada pela distribuição de capacidades materiais, é compreensível a posição contestadora russa. O país tem uma das maiores forças militares do globo, sua economia se recuperou do fim da União soviética, o país possui abundante recursos minerais. Esses fatores, em associação à posição privilegiada dentro do Conselho de Segurança das Nações Unidas, fazem com que a Rússia acredite que não pode ser ignorada em sua política externa.
No entanto, todos esses fatores não têm sido suficientes para manter sua esfera de influência, que se esvaziou de forma significativa na última década e meia. Dessa forma, a orientação pró-ocidental da Geórgia tem incomodado muito o Kremlin. As ações da Rússia na Abkásia e na Ossétia do Sul podem ter duas razões. A primeira delas seria a tentativa de mostrar à Geórgia que a governabilidade do pequeno país, sem o apoio russo, é improvável ou mesmo impossível, uma vez que o apoio que a Geórgia tem recebido dos EUA não tem sido suficiente para a sua estabilização, até mesmo por razões geográficas. A outra opção da Geórgia à Rússia, a União Européia, não parece disposta a indispor-se com a Rússia pela questão georgiana. Uma outra razão para o apoio aos separatismos seria a garantia nessas áreas da influência Russa. Embora o esforço no sentido de manter toda a Geórgia sob influência russa pareça prioritário, caso isso não aconteça seria importante estrategicamente para Moscou manter áreas fiéis ao Kremlin no Cáucaso, principalmente pelo apoio que essas regiões podem fornecer na estabilização do Cáucaso Russo.

Etnicidade e Construção Social
Uma explicação em termos de distribuição de capacidades materiais e manutenção de esfera de influência podem explicar a atuação de alguns atores, como a Rússia. No entanto, a dimensão local do conflito parece melhor explicada pelas diferentes percepções entre Georgianos, Ossetianos e Abkases. Tanto os ossetianos como os abkazes se valem do argumento étnico para reivindicar a independência. No entanto, não existe nada de natural no argumento de que, por serem de etnias distintas, as regiões têm que se separar. Na verdade, sequer o conceito de etnia em uma região como essa, marcada por fluxos migratórios e diásporas, tem algo de biológico, mas deve ser entendido como uma construção social. Nas situações aqui analisadas, ao contrário de outras regiões separatistas, o aspecto religioso não é o grande constituinte dessa diferença. No caso da Ossétia do Sul, a identificação com os ossetianos do norte é essencial para a diferenciação em relação os georgianos. No caso dos abkazes, o poder econômico e político independentes da Geórgia constituem em grande parte essa diferença. Esses fatores, aliados a narrativas históricas diferentes, costumes, cultura e línguas distintas fazem com que os ossetianos e os abkazes não se sintam parte do território georgiano.
No entanto, apenas essas diferenças não são suficientes para impedir a convivência dos três grupos sob a mesma soberania. Tensões étnicas existiram por muito tempo nessas regiões, mas os eventos violentos do início da década de noventa tiveram grande papel na internalização da idéia, por parte de todos os atores, de que a convivência pacífica, sob a mesma soberania, é impossível. Com a internalização da idéia de que as etnias deveriam ser separadas para que pudessem sobreviver, as rivalidades entre elas passaram a ser compreendidas como um dado daqueles sistemas de interação, ou seja, ao mesmo tempo em que essa idéia foi construída socialmente, ela passou a reforçar a situação de animosidade existente e a contribuir para as conseqüências violentas dos eventos.


Conclusão
Considerado a falta de apoio internacional à independência da Ossétia do Sul e da Abkásia, é pouco provável que Rússia vá além do apoio à separação de facto, como vem fazendo nos últimos anos. Mesmo que a Rússia não avance no sentido de promover o reconhecimento dessas regiões, um movimento contrário, no sentido de uma maior integração com a Geórgia tampouco é esperado, principalmente em razão das construções sociais aqui apontadas.
A instabilidade interna da Geórgia pode ser um convite a uma tentativa russa de retomada de influência sobre o país. A reeleição do presidente que assumiu após a Revolução da Rosa foi rodeada de incertezas e denúncias de fraude, o que pode significar sérios abalos em seu apoio. Aproximam-se ainda as eleições parlamentares, e a desestabilização do atual governo pode abrir portas à ingerência russa nos assuntos internos da Geórgia. Caso tal movimento aconteça, certamente será dificultado pelo apoio que os Estados Unidos têm prestado a esse governo. Dessa forma, entre a tentativa de manutenção da esfera de poder da Rússia, a orientação ocidental do governo georgiano e as aspirações de independência da Ossétia do Sul e Abkásia, é pouco provável que a situação sofra modificações substantivas nos próximos meses.

Adalgisa Bozi Soares é Membro do Programa de Educação Tutorial em Relações Internacionais da Universidade de Brasília - PET-REL e do Laboratório de Análise em Relações Internacionais - LARI (luluzinha_br@hotmail.com).

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