Em sua notável caracterização do capitalismo, o Manifesto Comunista de 1848 já assinalava a vocação desse sistema para revolucionar constantemente as forças produtivas. "Tudo que é sólido se desmancha no ar". A concorrência entre capitalistas e a permanente contradição com o trabalho coloca o capital em ininterrupta tensão, obriga-o a transformar métodos, técnicas, máquinas e processos industriais, produzindo mais-valia relativa.
Durante parte do século XX chegou-se a pensar, contudo, que o sistema capitalista poderia afinal ter encontrado, ao menos sob certo ângulo, uma espécie de platô no qual permaneceria estabilizado. O conjunto de procedimentos industriais enquadráveis sob a denominação de taylorismo parecia corresponder ao modo de organização do trabalho inerente ao capitalismo e, na condição de ponto de chegada de uma evolução, passaria a acompanhar a existência do capitalismo como uma marca definitiva.
No entanto, não seriam necessárias mais que duas décadas, desde o final da Segunda Guerra Mundial, para que surgissem sinais de que o capitalismo começava a produzir modificações também nesse campo. O Japão, premido pela concorrência com os EUA, impossibilitado de obter vantagens pela via da ampliação da produção em escala, começou a elaborar certas inovações, inicialmente sob a forma de novas tecnologias organizacionais. Produzindo preferencialmente sob encomendas e com baixa formação de estoques, foi possível alcançar vantagens na concorrência pela via da diversificação dos produtos.
Posteriormente, uma inovação bem mais marcante iria incidir sobre o rumo dessas mudanças. O uso da microeletrônica criaria a base técnica para o desenvolvimento desses novos padrões de produção. As tecnologias organizacionais ("ilhas" de produção, qualidade total, etc.) iriam encontrar uma base técnica mais adequada nas tecnologias de automação flexíveis: máquinas reconversíveis à base do complexo microeletrônico, anunciando para o velho taylorismo, já numa faixa visível do horizonte, a sentença da sua superação.
Essa flexibilização abre sobre o nosso tempo novas possibilidades para o avanço das forças produtivas: primeiro, porque permite encerrar os tempos mortos na utilização das máquinas, transformando-os em tempos produtivos; segundo, porque viabiliza a reprogramação da maquinaria com enorme rapidez, elevando a novas dimensões a diversificação da produção e a possibilidade de atendimento imediato às demandas mais específicas e mais individualizadas: algo inimaginável dentro dos padrões rígidos que caracterizaram durante um longo tempo histórico a produção em bases eletromecânicas1 .
Com os equipamentos de automação flexível, uma instalação básica elementar passa a admitir incontáveis alternativas de reprogramação. A produção sob encomendas ganha um novo significado, gerando-se a possibilidade de uma integração muito estreita entre o demandante (até individual) e a capacidade de pronto atendimento por parte do complexo produtivo.
Tendencialmente, vislumbra-se a necessidade de um outro tipo de formação ou capacitação técnica dos trabalhadores, na medida em que venham a disseminar-se as exigências de um preparo mínimo para operar as instalações básicas, e de uma simultânea capacidade para operar as adaptações subsequentes.
Em síntese, a chamada terceira revolução industrial, em curso nos países capitalistas centrais na atualidade, traz pelo menos duas conseqüências, se analisada sob o ângulo aqui proposto:
1) introduz tecnologias flexíveis e, nessa medida, aproxima de tal forma a estrutura da produção das demandas sociais (e individuais) que torna realista admitir-se a possibilidade de uma futura "volta" (num sentido dialético, como superação) ao sistema de encomendas dos tempos em que predominava o artesanato;
2) combina instalações básicas com a prerrogativa de sua reconversão ou reprogramação, tendo em vista a elaboração dos mais diversos produtos; em conseqüência, passa a exigir trabalhadores com preparo bastante distinto do trabalhador taylorista. Enquanto tendência, introduz a exigência de uma formação básica generalista associada a uma capacidade de criar adaptações especialistas de modo a viabilizar a diversificação produtiva.
Uma releitura de texto clássico de Marx e Engels
Deixemos de lado, agora, o terreno no qual nascem essas transformações, quer dizer, a sociedade capitalista, e coloquemos a discussão no terreno abstrato de uma futura sociedade socialista avançada. Questionemos, assim, as repercussões que tais mudanças já em curso nas forças produtivas da sociedade podem provocar sobre certos axiomas marxistas relativos à futura sociedade.
Por exemplo: uma das passagens da obra A ideologia alemã de mais forte apelo utópico é aquela na qual Marx e Engels associam o comunismo ao fim da divisão natural do trabalho. Essa última (a divisão natural do trabalho) seria produto da sociedade de classes, permaneceria durante o socialismo apenas como herança em extinção, mas seria definitivamente superada na etapa superior do comunismo. Textualmente:
Com efeito, desde o momento em que o trabalho começa a ser repartido, cada indivíduo tem uma esfera de atividade exclusiva que lhe é imposta e da qual não pode sair; é caçador, pescador, pastor ou crítico e não pode deixar de sê-lo se não quiser perder os seus meios de subsistência. Na sociedade comunista, porém, onde cada indivíduo pode aperfeiçoar-se no campo que lhe aprouver, não tendo por isso uma esfera de atividade exclusiva, é a sociedade que regula a produção geral e me possibilita fazer hoje uma coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar à tarde, pastorear à noite, fazer crítica depois da refeição, tudo isto a meu bel prazer, sem por isso me tornar exclusivamente caçador, pescador ou crítico.2
Mesmo em momentos nos quais os escritos de Marx eram assimilados incondicionalmente, essa passagem de A ideologia alemã era aceita com alguma dificuldade. Dado o próprio método materialista, que vincula as visões do futuro às tendências já visíveis no presente, uma previsão como essa podia sugerir uma mera ficção. Marx, por certo, pôde sentenciar essa caracterização do futuro porque discorria em alto grau de abstração, projetando para a futura sociedade sem classes aquilo que, em níveis baixíssimos de condições materiais, teria existido nas precedentes comunas primitivas. Sua base de sustentação era, aparentemente, as formas econômicas rudimentares do passado e não o presente concreto do capitalismo, uma vez que, em meados do século XIX, não se encontrariam fatos para respaldar semelhante incursão sobre o futuro.
Porém, cento e cinqüenta anos depois de escrita A ideologia alemã, as transformações em curso no interior da sociedade capitalista nos permitem reavaliar o problema, considerando as forças produtivas hoje disponíveis e os respectivos horizontes por elas abertos. O extraordinário desenvolvimento tecnológico havido no decorrer desse século e meio nos coloca num patamar de tal modo elevado que, já ao se observarem as tendências em andamento diante de nós, pode já se tornar intuitivamente admissível, enquanto perspectiva, a utopia comunista da divisão voluntária do trabalho.
Está óbvio que as tecnologias de automação flexível estão ainda nascendo e imensas mudanças ainda precisariam ocorrer para tornar a divisão voluntária do trabalho algo concreto. O que importa ressaltar, no entanto, é que a possibilidade do referido cenário futuro passa a encontrar respaldo embrionário (concreto) nos fatos atuais. O domínio coletivo sobre os conhecimentos básicos e a possibilidade de desenvolvimento desses conhecimentos para atender às necessidades das reconversões tecnológicas rápidas abre, em tese, um cenário para a realização da utopia comunista: quando a sociedade regulará a produção geral e permitirá ao trabalhador individual variar suas atividades ao seu bel prazer.
Enseja a rediscussão de teorias sobre a planificação e o comunismo
O fracasso do socialismo soviético deu grande impulso a um questionamento à própria viabilidade da planificação econômica. A disfunção generalizada da planificação soviética estava diretamente ligada à burocratização do Estado, ao estabelecimento de um centro tutelar que interpretava as necessidades sociais e, pela via da estimativa, ou sob a inspiração de interesses particulares da própria burocracia, as traduzia no Plano.
Uma das vertentes de crítica à experiência soviética, apoiada no marxismo clássico, contrapunha à planificação burocrática e tutelar a planificação social.3 Mas, no embate com os áulicos do capitalismo, a defesa da eficácia da planificação social parecia perder argumentos capazes de aceitação intuitiva sempre que esses críticos levantavam uma tese inspirada no senso comum: o atendimento às demandas sociais pelo Plano Econômico seria impraticável exatamente pelo fato de serem essas demandas, por natureza, mutáveis e inúmeras (portanto não enquadráveis em qualquer plano prévio).
O debate esteve, pelo menos até os últimos anos 70, às vésperas da crise final da URSS, cerceado por força de uma circunstância histórica: não havia, então, evidências concretas que pudessem ilustrar de forma convincente a operacionalidade da planificação social. A defesa da planificação alternativa aparecia muito mais como postulado ideológico, como credo, sem no entanto encontrar bases empíricas de fácil demonstração. Embora parecesse óbvio que o Plano deveria ser traçado a partir das necessidades sociais e não a partir das estimativas da burocracia, restava esclarecer de que modo as necessidades sociais poderiam revelar-se a tempo para lograr sensibilizar a parafernália produtiva e promover com eficiência os efeitos esperados.
Oskar Lange observou certa vez4 que cabia ao computador fazer no socialismo aquilo que o mercado faz na sociedade capitalista: a informática daria consistência à mão visível dos planificadores, cruzando as inúmeras demandas sociais com os insumos produtivos disponíveis. Ainda assim, permanecia um cenário complicado para a planificação socialista, dada a rigidez do aparato da produção. Cada mudança na demanda social exigiria tempo até que o complexo de máquinas disponíveis pudesse receber os sinais indicadores das novas demandas e, o que é mais importante, até que pudesse reaparelhar-se para atendê-las, superando o obstáculo decorrente do caráter mutante e do dinamismo das necessidades humanas.
As inovações que o capitalismo cria na atualidade, ao introduzir na cena as tecnologias de automação flexível, admitem (em tese), no entanto, uma recuperação, em nível altamente superior, dos antigos processos de produção artesanal. O atendimento às encomendas pode atingir o nível de personificação que, no passado, marcava os produtos dos artesãos. Uma imagem algo fantástica de um futuro possível insinua-se no horizonte, onde um complexo industrial altamente desenvolvido poderá ser capaz de atender rapidamente às mais detalhadas e variadas demandas individuais.
Concluímos com a consideração de que a planificação social ganha novas condições de eficácia por conta dos embriões atuais das novas tecnologias, fato que atribui mais um toque de realismo a diversas teses marxistas acerca do comunismo: sobretudo, as tendências em desenvolvimento dão nova base material às teses sobre a planificação econômica e, — para retornarmos a A ideologia alemã, — permitem um novo ângulo através do qual se pode reler a clássica passagem de Marx e Engels quanto à futura divisão voluntária do trabalho.
Assim sendo, nesse momento, nesse final de século, cento e cinqüenta anos depois de escrita, nada mais adequado do que reafirmar a inteligência daquela célebre evocação do futuro: no comunismo, é a sociedade que regula a produção geral; e a divisão voluntária do trabalho permite a cada um escolher o que fazer hoje ou amanhã, caçando pela manhã, pescando à tarde e fazendo crítica depois da refeição, - sem por isso se tornar exclusivamente caçador, pescador ou crítico ...
Notas
(1) TAUILE, J. R. Novos padrões tecnológicos, competitividade industrial e bem-estar social: perspectivas brasileiras. In: VELLOSO, J. P. R. (Coord.). A nova estratégia industrial e tecnológica: o Brasil e o mundo da III Revolução Industrial. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990. p.142-50.
(2) MARX, K., ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1974. p.40-1.
(3) MEYER, V. Determinações históricas da crise da economia soviética. Salvador: EDUFBA, 1995, passim.
(4) LANGE, O. The computer and the market. In: NOVE, A., NUTTI, D. M. (Ed.). Socialist economics: selected reading. Middlesex: Penguin Book, 1974, passim.
Victor Meyer é mestre em Economia, doutorando em Administração Pública e professor da Universidade Estadual de Feira de Santana e da Universidade Católica do Salvador.
Revista Olho da História
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