terça-feira, 21 de julho de 2009

Geopolítica e Crise


Geopolítica e Crise
O Professor da USP André Roberto Martin fala sobre o jogo de poder entre BRIC e G7 em tempos de crise - e depois dela
por Marcelo Marcondes

A crise na economia mundial, que começou a se deflagrar em setembro do último ano nos Estados Unidos rapidamente se alastrou para a Europa e para a Ásia. Até o final de 2008, alguns dos países chamados de BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) haviam sofrido menos do que suas contrapartes do G7. Porém, se em alguns lugares a crise tardou a chegar, ela não falhou.

É verdade que o Brasil é dos países que está mais preparado para enfrentar a crise: reservas de US$ 200 bi permaneceram intocadas mesmo após meses de crise; ausência de bolhas de crédito e imobiliárias (estopim da crise nos EUA); bancos ‘saudáveis’ e regulados; projeções do FMI e do Banco Central otimistas para 2009 (os mesmos órgãos apontam estagnação para o resto do mundo); estabilidade econômica e exportações diversificadas. Tudo isso compete para criar um quadro ainda não tão alarmante da crise para o Brasil. Contudo, não é arriscado falar que 2009 será marcado pela crise financeira. E isto trará, cedo ou tarde, consequências para a geopolítica mundial.



Geórgia/Ossétia do Sul
A ofensiva russa na Geórgia, apoiando a independência da Ossétia do Sul, trouxe a morte de cerca de 385 soldados, feriu aproximadamente 3 mil e desapareceu com 50.




A crise pelo mundo

No início de 2009, houve uma queda de 73% do preço do petróleo de seu pico, levando grandes produtores como os países do Oriente Médio e a Rússia a perdas significativas.

A crise e as bolhas de crédito nos EUA trouxeram prejuízo para o modelo econômico das economias emergentes da Ásia. Cerca de 50% do PIB desses países é exportado para o Oeste, que se endividava para alimentar o crescimento asiático. Além disso, surgem cada vez mais fortes os ecos do nacionalismo econômico (protecionismo em alta, principalmente por parte dos países europeus, dos EUA, com o buy american, e até de países mais próximos, como a Argentina).

O enfraquecimento da economia americana, a multipolarização mais acentuada, tanto econômica, quanto cultural e política. Se isto já vinha ocorrendo, como prenunciou Paul Kennedy na década de 1980, a atual crise só vem agravar este quadro. Para conversar sobre o assunto, a Conhecimento Prático Geografia foi atrás de André Roberto Martin, professor doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo, na qual também é livre-docente especializado em regionalização e geopolítica.

Conhecimento Prático Geografia
A crise financeira mundial proporcionou uma queda de 73% do preço do petróleo de seu pico, levando a Rússia a perder um terço de suas reservas acumuladas ao longo de nove anos em apenas três meses e valor de mercado das empresas russas de capital aberto a cair 70%. A Rússia também passa por um momento de conflito geopolítico importante na região da Geórgia/ Ossétia do Sul e, além disso, houve paralisação do provimento de gás russo para muitos países europeus. Como estes fatos estão interligados, professor? Como a crise pode e/ou como ela afeta a geopolítica? Utilizemos aqui o contexto russo.

André Roberto Martin A Rússia foi a primeira vítima da aproximação entre EUA e China iniciada por Henry Kissinger ainda em 1968 com a “diplomacia do ping-pong”. Seu cacife são os hidrocarbonetos e, principalmente, o gás natural. É com ele que ela espera substituir a dependência europeia do petróleo “árabe-americano”, muito instável exatamente pelo “caos” no Oriente Médio. De modo que não creio que os preços do petróleo fiquem tão baixos por tanto tempo, e acredito que o gás natural tem mais futuro. Assim, a Rússia precisa manter-se firme e esperar passar a borrasca. Acho a dupla Medvedev/Putin preparada e eles têm um às na manga, por onde planejam sair da crise: a industria bélica.

CP GEO Seguindo com os BRICS; a China está sofrendo paulatina e constantemente com a crise, uma vez que ela depende, em grande parte, do poder de compra dos EUA. Além disso, volta e meia ressurgem conflitos na região do Tibete. No contexto de um mundo cada vez mais multipolar, em que a China era a gigante e vermelha bola da vez, como fica este cenário? A crise afetará a China ou ela sairá fortalecida desta, tanto econômica quanto politicamente?
ARM: A China, apesar de muito interligada aos EUA, é também muito autônoma, no sentido de que seu mercado interno depende pouco dos EUA. As nossas commodities, como o ferro e a soja, são muito mais vitais para a China hoje do que os imensos carros produzidos em Detroit. Assim, a coisa em comum que deve ser destacada e que une o BRIC é seu grande mercado interno, coisa que os EUA também possuem. E é a diminuição do peso relativo desse mercado em termos mundiais, a verdadeira essência da crise. É a crise na confiança da liderança americana, de que o crescimento do mercado interno americano é o motor da economia mundial. E isso foi fundamentalmente a China que corroeu, ainda que em parceria estratégica com os EUA com vistas a enfraquecer a Rússia. Portanto, acredito que, no cenário mundial atual, a China ainda é a grande vitoriosa, pois avançou muito em relação a seus dois oponentes, Estados Unidos e Rússia.

CP GEO Segundo dados do FMI, a Índia é o segundo país que mais crescerá dentre os BRICs em 2009 (com 5,1%, atrás da China com 6,7% e à frente do Brasil com 1,5%). Porém, ela também continua sendo afetada por disputas políticas em seu território. A incessante luta ideológica entre muçulmanos e hindus, que, em dezembro de 2008, alvejou uma das mais importantes cidades do país, Mumbai, matando 173 pessoas e atribuído a Lashkar-e-Taiba (militante muçulmano do movimento de independência da Caxemira). Este tipo de conflito pode pesar num contexto de crise?
ARM: Embora a Índia conviva com mais conflitos em seu território e tenha uma relação conturbada com seus vizinhos, o uso da energia nuclear naquele país já é em larga escala, coisa que no Brasil ainda é muito incipiente. Este uso é estratégico, pois permite mais poder de decisão em questões geopolíticas. E nesse ponto a Índia vem vencendo com muito mais energia, além de registrar taxas maiores de crescimento do PIB.





Paul Kennedy
Paul Michael Kennedy é um historiador britânico cujo principal foco de estudo são as relações internacionais e a atuação da política externa britânica. Seu mais famoso livro é “Ascensão e Queda das Grandes Potências”, essencial na biblioteca de qualquer um que se proponha a estudar a geopolítica e as relações internacionais. Publicado pela primeira vez em 1987, o livro já foi traduzido para 23 línguas e expõe a tese, como o próprio título sugere, de um novo mundo, multipolarizado. Já em meados da década de 1980 Kennedy vaticinava o que estamos vivenciando de maneira mais clara nos dias de hoje. A única diferença é que, à época da primeira edição, ainda não se falava do poderio chinês, e muito burburinho havia acerca da ascensão econômica nipônica. Atualmente, Kennedy é professor de história britânica na prestigiosa universidade de Yale, nos Estados Unidos.



“Quando digo que o Brasil tem o papel histórico de ‘desfazer’ coisas que a Inglaterra fez, referi-me às fronteiras: Cabe ao Brasil, me parece, o papel de ‘unir para libertar’ precisamente esse hemisfério, vítima do colonialismo. América Latina, Ásia, África e Oceania ainda apresentam resquícios daquele período e, não possuindo inimigos, vejo o Brasil em ótimas condições para ‘costurar’ um bloco diplomático muito amplo, como é a minha idéia do ‘meridionalismo’.”
André Roberto Martin

CP GEO Tendo em vista todas essas questões, qual a possibilidade de um mundo multipolar no qual o Brasil, menos afetado pela crise e longe de conflitos políticos marcantes, ganhe um maior destaque dentre os BRICs, e, consequentemente, no panorama mundial? A cadeira no Conselho de Segurança ainda é algo almejável? Seria positivo para o país do ponto de vista geopolítico? Como a crise pode nos ajudar neste sentido?
ARM: O setembro negro de 2008 é só continuação do setembro negro de 2001 e outros setembros-negros, porque é a necessidade do petróleo árabe o que faz os EUA cometerem essas loucuras (a saber: após o 11/9, a ofensiva no Iraque e Afeganistão e, mais recentemente, as bolhas de crédito). O ex-presidente George W. Bush certa vez declarou: “Nós temos um sério problema: a América é viciada em petróleo”. Com o fim da dependência da exportação do petróleo (autossuficiência nossa em petróleo já conquistada e que tende a aumentar após a exploração do pré-sal), o Brasil devia pensar em investir na indústria bélica. Este é o ponto vulnerável do Brasil que, no entanto, não tem vetos nesse terreno. A meu ver, o Brasil já poderia ter aplicado capitais excedentes na tecnologia nuclear. Talvez a grande culpada ainda seja a mentalidade colonial que ainda impera entre nossos governantes.

CP GEO Falando sobre o colonialismo, comente, por favor, a frase, de sua autoria: “o Brasil nasceu para ser a Anti- Inglaterra”. Como que a crise pode criar oportunidades para que o país rume a este objetivo?
ARM:Quando digo que o Brasil tem o papel histórico de “desfazer” coisas que a Inglaterra fez, referi-me às fronteiras. A “pérfida Albion” (apelido dado na era do imperialismo à Inglaterra) tudo fazia no intuito de “dividir para dominar” o planeta e em particular o Hemisfério Sul. Cabe ao Brasil, me parece, o papel de “unir para libertar” precisamente esse hemisfério, vítima do colonialismo. América Latina, Ásia, África e Oceania ainda apresentam resquícios daquele período e, não possuindo inimigos, vejo o Brasil em ótimas condições para “costurar” um bloco diplomático muito amplo, como é a minha idéia do “meridionalismo”. Quanto à crise, ela traz a coincidência de um problema financeiro, com outro energético, mais um ambiental, e, finalmente, outro relativo à segurança e à liderança dos EUA. Tudo isso está em jogo ao mesmo tempo, uma vez que o dólar e o petróleo estão em franca decadência. Ocorrerá o mesmo com as universidades anglo-americanas e a língua inglesa? Acho que sim, na medida em que o monopólio anglo-saxônico da pesquisa, do dinheiro e da língua se quebrem — e é isto que a crise anuncia.

Revista Geografia

Nenhum comentário:

Geografia e a Arte

Geografia e a Arte
Currais Novos