terça-feira, 29 de junho de 2010

Somália, o país mais perigoso do mundo


Militante islâmico guarda posição em Mogadíscio, capital da Somália
Somália, o país mais perigoso do mundo

No Chifre da África, é possível compreender de forma brutal a lógica do imperialismo diante da tentativa dos movimentos islâmicos de construir um Estado-nação

por Luiz Carlos Bresser-Pereira

Se quisermos compreender a lógica da geopolítica estadunidense no Oriente Médio e o sentido dos movimentos políticos islâmicos, devemos voltar nosso olhar para a Somália, um caso-limite que nos permite ver com clareza o que fica nebuloso ou ambíguo em circunstâncias menos dramáticas.

Entre os Estados-nação considerados “fracassados” no mundo, a Somália é o primeiro colocado, de acordo com a Peace Foundation e o Brookings Institute. É um país praticamente sem Estado, e, portanto, sem ordem pública, sem sistema judiciário, sem proteção social, sem nada. Seu povo combina a extrema pobreza à organização por clãs e à dominação por senhores da guerra. Além disso, a Somália fica na região Nordeste da África, que nos últimos anos ganhou as manchetes dos jornais ao se tornar foco de pirataria marítima.

Trata-se também de um território onde fica clara a lógica imperial dos Estados Unidos e o caráter nacionalista e moderno dos movimentos islâmicos, que buscam estabelecer a ordem em meio ao caos. Ao contrário do que afirma o saber convencional ocidental, estes últimos não se caracterizam principalmente por ser expressão do fundamentalismo religioso, mas como movimentos políticos voltados para a liberação nacional e a formação do Estado-nação. Eles usam a religião para enfrentar dois flagelos: a dominação externa e o atraso e desunião de sua própria sociedade. Para isso, procuram reproduzir o que os países desenvolvidos fizeram, construindo uma nação e formando um Estado que sirva de instrumento para conseguirem, além da ordem, os objetivos políticos das sociedades modernas: liberdade, bem-estar econômico, justiça social e proteção do ambiente.

Os Estados Unidos são o obstáculo fundamental à realização desta tarefa, intervindo nos países e se aliando aos setores mais atrasados e corruptos – que, no pior dos casos, são chefes-jagunços ou senhores de guerra. Ao invés de entenderem os movimentos islâmicos como de caráter político-nacionalistas, com os quais se pode discordar, mas se deve respeitar, os EUA os combatem. E para tanto, utilizam um argumento absurdo e persuasivo para com seus próprios cidadãos de que esses movimentos representam uma ameaça à segurança nacional americana.

O jornalista Jeffrey Genttleman, colaborador da revista Foreign Policy, já esteve doze vezes na Somália e considera este “o país mais perigoso do mundo”. “A Somália”, diz ele, “conheceu um breve período de paz com a chegada ao poder dos islâmicos, em 2006. Mas a partir do momento em que os americanos os expulsaram, o país enterrou-se novamente no horror”. Em sua última viagem para lá ele contratou dez homens armados para protegê-lo.

A Somália é um país de 10 milhões de habitantes. Ao contrário de muitos Estados africanos, é um país homogêneo do ponto de vista da língua (todos falam o somali) e religioso (todos são muçulmanos sunitas). Sua estrutura é de clãs, tradicional a todos os povos da região. A Somália foi dominada no final do século XIX pela Grã-Bretanha e pela Itália. Logrou independência em 1960. Desde 1969 até 1991 foi dirigida por um general, Mohammed Siyad Barré, que pretendia modernizar o país, mas não conseguia controlá-lo. Em 1991 ele foi derrubado pelos senhores de guerra e desde então, imperou o caos.

A Somália se situa em um ponto estratégico do continente, no chamado Chifre da África, dominando o Golfo de Aden e, juntamente com o Djibuti, a entrada para o Mar Vermelho. Aí está o interesse que desperta: afinal, trata-se de uma região em que os recursos petrolíferos continuam a determinar a geopolítica imperial. Em 1992, depois da Guerra do Golfo, e em um momento de auge da hegemonia estadunidense, o presidente George H. Bush (pai), a pretexto da desordem que reinava no país e no golfo, resolveu enviar milhares de marines para proteger os comboios de víveres. Os conselheiros do presidente, entretanto, a partir da constatação da divisão do país entre senhores de guerra rivais, subestimaram a capacidade de resistência nacional do povo somali. O resultado foi a “queda do falcão negro” – episódio militar relatado em filme de Ridley Scott no qual dois helicópteros Black Hawks foram derrubados em Mogadíscio e morreram 18 soldados americanos.

Humilhados, os americanos retiraram-se da Somália. No decênio que se segue, relata Jeffrey Genttleman, adeptos do islamismo sunita, com base principalmente na Arábia Saudita, voltaram sua atenção e seus esforços para lá. Construíram mesquitas, organizaram escolas corânicas, desenvolveram projetos de assistência social. O processo de renovação islâmica ganhou força em 2000, quando os anciãos dos clãs de Mogadíscio criaram uma rede informal de tribunais por bairros, a fim de estabelecer um mínimo de ordem na capital do país. Eles prenderam os acusados de assassinato e roubo, julgaram-nos e os colocaram na prisão, usando como lei a chária, ou seja, a lei islâmica que foi aceita por todos os clãs. É importante lembrar que o islã, diferentemente do cristianismo, é uma religião “legal”: o Corão é em boa parte constituído de preceitos legais. Os anciãos denominaram essa rede União dos Tribunais Islâmicos. Estavam, assim, construindo um Estado na Somália. O novo sistema conseguiu inclusive o apoio dos grandes (relativamente) empresários locais, que logravam mais segurança para seus negócios sem ter que pagar impostos. Como uma espécie de retribuição, eles resolveram contribuir para o Estado informal com a compra de armas.

Em 2005, a CIA (Agência Central de Inteligência americana), que vinha acompanhando os acontecimentos, decidiu intervir. O sistema islâmico em formação lhes pareceu um perigo. Embora não houvesse qualquer indício nesse sentido, a CIA entendeu que a Somália poderia ser um novo berço de jihad – de guerra santa – como havia acontecido com o Afeganistão. O governo dos EUA entrou em ação: não chegou a dizer que buscava a democracia; interveio em nome da ordem interna do país e da segurança nacional dos Estados Unidos. Escaldado, entretanto, pela experiência anterior, ao invés de enviar tropas, decidiu aliar-se e pagar os senhores de guerra. Ou seja, firmou laços com aqueles que eram os algozes da população há decênios. A primeira notícia que li a respeito foi em The Economist. A estratégia dos impérios de se aliar aos grupos dominantes conservadores dos países dominados é antiquíssima, e foi nos tempos modernos sempre uma norma por parte dos países ricos em relação àqueles em desenvolvimento. Mas dessa fez fiquei surpreso: parecia um passo além.

Jeffrey Genttleman conta em detalhes como isto aconteceu. Um senhor de guerra lhe disse que dois agentes da CIA chegaram a Mogadíscio um determinado dia de 2006 com malas cheias de dinheiro e disseram aos chefes-jagunços: “Usem esse montante para comprar armas. Se tiverem perguntas, enviem um e-mail para o endereço: no_email_today@yahoo.com”. A estratégia, porém, não funcionou. O regime estabelecido pelos anciãos islâmicos já havia se desenvolvido. Reinava ordem em Mogadíscio. Usando a bandeira da religião, os islâmicos haviam inclusive conseguido que boa parte da população entregasse suas armas. E conseguiram persuadir as cidades costeiras a não se dedicar à pirataria. Quando não eram ouvidos, eles tomavam de assalto os navios sequestrados. Tanto que, naquele ano, segundo a Agência Internacional Marítima de Londres, só houve 10 registros de incidentes desse tipo na região.

A reação à aliança dos Estados Unidos com os senhores de guerra foi o fortalecimento dos grupos islâmicos mais radicais, que buscaram impor uma lei mais rígida sobre a população, especialmente sobre as mulheres. Este fato reassegurou a CIA quanto ao acerto de sua estratégia de aliança com os senhores de guerra, e esta foi mantida. Havia, entretanto, ainda a possibilidade de neutralizar os grupos islâmicos mais radicais por meio de um acordo com os grupos não radicais que eram dominantes. Em setembro de 2006 o deputado democrata Ronald M. Payne, presidente da subcomissão da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos sobre a África, propôs que se procurasse aproveitar essa oportunidade, mas não foi ouvido. Ao invés disso, o governo americano optou por uma intervenção armada, convocando para isso as forças do país vizinho e tradicional inimigo – a Etiópia.

A Etiópia é um “bastião cristão” na “guerra das civilizações” criada pelos neoconservadores. Em acordo com a CIA, o governo da Etiópia assegurou que a Somália estava dominada por islâmicos terroristas e jihadistas, que se constituíam em uma ameaça para toda a região. Em dezembro de 2006, com o apoio e a participação de membros das forças especiais americanas, a Etiópia invadiu a Somália e, em uma semana, expulsou o governo islâmico praticamente desarmado de Mogadíscio. Para “extirpar” o movimento islâmico, os Estados Unidos responsabilizaram-se por ataques aéreos e com mísseis originados de seus navios de guerra.

Os islâmicos entraram na clandestinidade, mas, algumas semanas depois, retomaram a insurreição. E com força, apoiados pela população. O governo estabelecido era constituído de senhores de guerra. Rapidamente, perdeu o apoio dos clãs poderosos que poderiam ser seus aliados. No início de 2009, foi estabelecido um novo “governo de transição” – o décimo quarto governo desde 1991 – desta vez presidido por um jovem islâmico moderado. Mas esse governo está sendo gradualmente encurralado em um pequeno território em Mogadíscio. Os islâmicos – agora os mais radicais mas nem por isso terroristas – já controlam a terceira cidade do país, Baidoa, e ali estabeleceram a chária. Eles estão mais bem armados, e fortalecidos em seu intento de criar um Estado na Somália.

O uso da religião pelos movimentos nacionalistas para unir o povo em torno da bandeira nacional e modernizar o país é antigo. O primeiro povo que construiu uma nação, organizou um Estado, e afinal se firmou como Estado-nação moderno, industrializado, foi a Grã-Bretanha. Lembremos que nos albores da sua formação nacional, no século XVI, Henrique VIII estabeleceu para sua nação uma religião nacional, a Igreja Anglicana. Essa estratégia foi repetida por praticamente todos os movimentos nacionalistas que buscavam formar seu Estado. Quase sempre tiveram que usar da violência para derrotar os poderosos regionais e para conseguir a libertação. Mas essa violência não justificava que fossem chamados de fundamentalistas ou de terroristas; nem que se falasse em guerra de civilizações. Porque não estavam fazendo outra coisa senão seguir a regra política fundamental do desenvolvimento capitalista ou da modernização: cada povo busca se constituir como nação, assenhorear-se de um território e nele estabelecer um Estado moderno, formando, assim, um país soberano.

Esta tarefa foi feita inicialmente pelos povos dos países hoje ricos. Mas vem sendo copiada pelos demais Estados em desenvolvimento, que, entretanto, enfrentam uma dificuldade maior, porque agora contam com a oposição dos países ricos cujos interesses estão associados à manutenção do atraso. Em certos casos, porém, como é o caso da Somália, essa oposição se transforma em hostilidade devido a considerações de segurança nacional das grandes potências, a meu ver equivocadas. Na era da globalização, o controle imperial de fontes de matéria-prima faz pouco sentido, e confundir movimentos nacionalistas com terrorismo antiamericano do tipo representado pelo pan-arabismo da Al Qaeda, menos ainda.

Os povos muçulmanos que vivem nessa região não utilizaram inicialmente a religião como forma de união nacional. Pelo contrário, o primeiro grande líder nacionalista muçulmano a liderar uma revolução nacional em seu país, Mustafá Kemal Ataturk, estabeleceu um modelo de revolução secularista na Turquia nos anos 1920. O êxito dessa experiência levou à sua reprodução em muitos países. Gamal Abdel Nasser, no Egito dos anos 1950, foi provavelmente a experiência mais interessante nesse sentido, mas houve muitas outras, algumas cedo esmagadas pelas potências imperiais, como foi o caso de Mohammed Mossadegh, no Irã, quando, nos anos 1950, que nacionalizou a produção de petróleo. Outras se mostraram mais duradouras, mas igualmente fracassadas, como a do partido bahatista no Iraque, ou que sobrevivem com dificuldade, como o regime também bahatista na Síria e o regime militar na Argélia. Assim, ainda que por diversas razões, a estratégia secularista afinal fracassou.

Por isso, quando, no final dos anos 1970, um movimento islâmico no Irã derrubou o governo corrupto e desmoralizado do xá que ali havia sido posto pelas potencias ocidentais, estava sendo definido um outro modelo de revolução nacional no qual a religião era usada para garantir a coesão. Como os novos governantes adotavam convicções e práticas religiosas radicais, foram identificados como fundamentalistas – e de fato o eram – mas o que o Ocidente se recusou a compreender foi que essa não era e não é a característica principal dos movimentos islâmicos modernos. Estes não são movimentos religiosos, mas políticos.

Luiz Carlos Bresser-Pereira é economista, cientista político e ex-ministro de Administração Federal e Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1999).

Le Monde Diplomatique Brasil

Cientistas fazem 'mapa da gravidade' da Terra


Jonathan Amos
da BBC News, em Bergen

Cientistas criaram um "mapa da gravidade" terrestre, mostrando as diferentes influências desta força física ao redor do planeta.

O modelo, conhecido como geoide, define onde estão os níveis da superfície terrestre, esclarecendo se o sentido é "para cima" ou "para baixo".

Os cientistas afirmam que os dados podem ser usados em inúmeras aplicações, entre elas nos estudos de mudança climática para ajudar a entender como a grande massa de oceanos move calor ao redor da Terra.

O novo mapa foi apresentado em um simpósio sobre observação terrestre em Bergen, na Noruega, onde também estão sendo apresentados dados recolhidos por outras missões da Agência Espacial Europeia (ESA, na sigla em inglês).

Antes do fim da década, cerca de 20 missões da ESA totalizando cerca de 8 bilhões de euros serão lançadas para observar o espaço através de sondas.

Parâmetros

O mapa foi desenhado a partir de medições precisas realizadas pelo satélite europeu Goce, sigla formada a partir das iniciais da sonda exploradora de campo gravitacional e equilíbrio estacionário que circula na órbita terrestre a uma altitude de pouco mais de 250 km da superfície – a órbita mais baixa de um satélite de pesquisa em operação.

A Goce carrega três pares de blocos de platina dentro de seu gradiômetro – o aparelho que mede o campo magnético da Terra – capazes de perceber acelerações leves da gravidade sentida na superficie.

Em dois meses de observação, o satélite mapeou diferenças quase imperceptíveis na força exercida pela massa planetária em diferentes pontos do globo.

O mapa define, em um determinado ponto, a superfície horizontal na qual a força da gravidade ocorre de maneira perpendicular.

Estas inclinações podem ser vistas em cores que marcam como os níveis divergem da forma elíptica da Terra. No Atlântico Norte, perto da Islândia, o nível se situa a cerca de 80 metros sobre a superfície da elipsoide. No Oceano Índico, esse nível está 100 metros abaixo.

Os cientistas dizem que o mapa permitirá aos oceanógrafos definir como seria a forma dos oceanos se não houvesses marés, ventos e correntes marítimas. Subtraindo a forma do modelo, ficam evidentes estas outras influências.

Esta informação é crucial para criar modelos climáticos que levam em conta como os oceanos transferem energia ao redor do planeta.

Usos

Há outros usos para o geoide. O modelo fornece um sistema universal para comparar altitudes em diferentes partes da Terra, à semelhança dos aparelhos de nivelamento que, na construção, revelam aos engenheiros para onde um determinado fluido corre naturalmente dentro de um tubo ou cano.

Cientistas geofísicos também podem usar os dados da sonda para investigar o que ocorre nas entranhas profundas da Terra, especialmente naqueles pontos susceptíveis a terremotos e erupções vulcânicas.

"Os dados da Goce estão mostrando novas informações no Himalaia, na África Central, nos Andes e na Antártida", explica o coordenador da missão da Esa, Rune Floberghagen.

"São lugares bem inacessíveis. Não é fácil medir variações de alta frequência no campo gravitacional da Antártida com um avião, porque há poucos campos aéreos a partir dos quais operar."

A altitude extremamente baixa da Goce deveria limitar a utilização da sonda por no máximo mais dois anos. Entretanto, níveis relativamente baixos de atividade solar produziram condições atmosféricas calmas, fazendo o satélite consumir menos combustível que o estimado.

A equipe crêe que a sonda poderia ser utilizada até 2014, quando a falta de combustível desaceleraria a missão, obrigando-a a sair de órbita.

BBC Brasil

Inércia seria mais eficaz contra óleo no mar

Reuters
Cientistas dizem temer que a operação agressiva de limpeza seja mais nociva ao meio ambiente do que o vazamento propriamente dito
Londres - Talvez tivesse sido melhor para o meio ambiente não ter feito nada com a enorme mancha de petróleo no Golfo do México, exceto deixá-la "à vontade" no mar, disseram cientistas britânicos.

Biólogos e ambientalistas marinhos disseram temer que a operação agressiva de limpeza, na qual o óleo recolhido é queimado e dispersantes químicos são jogados no mar, pode ser mais nociva ao meio ambiente do que o vazamento propriamente dito.

Casos anteriores sugerem que deixar que o óleo se disperse e evapore naturalmente é melhor a longo prazo, embora seja uma opção considerada politicamente inviável, disseram os cientistas.

"Um dos problemas deste vazamento é que passou de uma arena ambiental para a arena econômica e política, então se você perguntar quão ruim isso é, depende de qual perspectiva você está usando", disse Martin Preston, especialista em poluição marinha e em ciências da Terra e dos oceanos, da Universidade de Liverpool.

"Economicamente é claro que o impacto foi muito grande, mas ambientalmente ainda não se sabe. Uma das tensões entre meio ambiente e política é que os políticos não podem dar a impressão de que não fazem nada, mesmo que às vezes não fazer nada seja a melhor opção."

Os cientistas disseram a jornalistas em Londres que o vazamento, iniciado em 20 de abril com a explosão e naufrágio de uma plataforma petrolífera, não é por enquanto uma catástrofe ambiental.

O governo estima que o vazamento no poço submarino chegue a 9,5 milhões de litros por dia. Uma grande parte do petróleo ainda está solto no mar, mas uma parte começa a se dirigir para a costa sul dos Estados Unidos, onde os frágeis manguezais da Louisiana já foram as regiões mais afetadas.

O governo dos Estados Unidos e a empresa British Petroleum, dona do poço, estão sob pressão da opinião pública para acelerar o fim do vazamento. O óleo causa graves prejuízos aos setores turístico e de pesca, e a população ficou horrorizada com as imagens de aves e outros animais encharcados de óleo.

Christoph Gertler, da Universidade Bangor, que tem estudado vários produtos potenciais para vazamentos de petróleo, disse que relatórios da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos sugeriram que os dispersantes estavam "mudando a natureza do óleo em um caminho muito desfavorável", tornando mais difícil sua decomposição por bactérias marinhas naturais.

Revista EXAME

Os 10 maiores acidentes petrolíferos da história

Getty Images

O maior desastre petrolífero da história: bombeiros tentam controlar vazamento provocado pelas tropas iraquianas, no Kuwait, em 1991

Vanessa Barbosa

Juntos, eles respondem por 68% dos vazamentos de petróleo mais graves já registrados nos últimos 70 anos

São Paulo - A maré negra que se espalha no Golfo do México desde a explosão e o afundamento da plataforma da British Petrolium, no último dia 20 de abril, tem o potencial de causar danos ambientais de grande alcance. Mas não é, nem de longe, um dos maiores vazamentos de petróleo já registrados na história.

Nos últimos 70 anos, mais de 80 episódios de média e alta gravidade lançaram nos mares e oceanos cerca de 7,4 bilhões de litros de petróleo - o correspondente ao volume de quase 3000 piscinas olímpicas. Os dez maiores desastres respondem por 68% desse total.

Seriam necessários meses para o acidente da BP se igualar ao do Ixtoc I, um superpetroleiro que explodiu há 30 anos e derramou 454 mil toneladas de petróleo na baía de Campeche, no México. E anos para alcançar a magnitude dos 2 bilhões de litros derramados pelas forças iraquianas durante a Guerra do Golfo, em 1991, o maior da história. O volume de óleo jorrado pelo poço da BP - cerca de 11 milhões de litros, até agora - ainda é dez vezes menor que o liberado em 1967 pelo Torrey Canyon, um dos primeiros supertanques petrolíferos, que, após colidir com um recife, despejou 119 mil toneladas do óleo na costa sudoeste do Reino Unido.

Se o vazamento no Golfo do México não for controlado a tempo, talvez suas consequências se igualem às do Exxon Valdez, que entrou pra história não como um dos maiores acidentes petrolíferos, mas como um dos mais graves e emblemáticos. Em 1989, a embarcação americana contaminou 2.000 quilômetros de um litoral intocado, matando milhares de aves marinhas, focas, lontras e orcas. Duas décadas depois, ainda restam 95 mil litros de óleo na região, a maior parte debaixo da terra, segundo um estudo publicado em janeiro na revista Nature Geoscience. A seguir conheça os dez maiores acidentes petrolíferos da história, suas cronologias e dimensões de vazamento:

1- Guerra do Golfo, Kuwait, Golfo Pérsico (janeiro/1991)
Volume: 1 milhão e 360 mil toneladas (753 piscinas olímpicas)
O pior vazamento de petróleo da história não foi propriamente acidental, mas deliberado. Causou enormes danos à vida selvagem no Golfo Pérsico, depois que forças iraquianas abriram as válvulas de poços de petróleo e oleodutos ao se retirarem do Kuwait.

2- Ixtoc I, Campeche, Golfo do México (junho/1979)
Volume: 454 mil toneladas (251 piscinas olímpicas)
A plataforma mexicana Ixtoc 1 se rompeu na Baía de Campeche, derramando cerca de 454 mil toneladas de petróleo no mar. A enorme maré negra afetou, por mais de um ano, as costas de uma área de mais de 1.600 km2.

3- Poço de petróleo Fergana Valley, Uzbequistão (março/1992)
Volume: 285 mil toneladas (158 piscinas olímpicas)
Trata-se de um dos maiores acidentes terrestres já registrados. Em março de 1992, a explosão de um poço no Vale da Fergana afetou uma das áreas mais densamente povoadas e agrícolas da Ásia Central.

4- Atlantic Empress, Tobago, Caribe (julho/1979)
Volume: 287 mil toneladas (159 piscinas olímpicas)
Durante uma tempestade tropical, dois superpetroleiros gigantescos colidiram próximos à ilha caribenha de Tobago. O acidente matou 26 membros da tripulação e despejou milhões de litros de petróleo bruto no mar.

5- Nowruz, Irã, Golfo Pérsico (fevereiro/1983)
Volume: 260 mil toneladas (144 piscinas olímpicas)
Durante a Primeira Guerra do Golfo, um tanque colidiu com a plataforma de Nowruz causando o vazamento diário de 1500 barris de petróleo.

6- ABT Summer, Angola (maio/1991)
Volume: 260 mil toneladas (144 piscinas olímpicas)
O superpetroleiro Libéria ABT Summer explodiu na costa angolana em 28 de maio de 1991 e matou cinco membros da tripulação. Milhões de litros de petróleo vazaram para o Oceano Atlântico, afetando a vida marinha.

7- Castillo de Bellver, Africa do Sul (agosto/1983)
Volume: 252 mil toneladas (139 piscinas olímpicas)
Depois de um incêndio a bordo, seguido de explosão, o navio espanhol rachou-se ao meio, liberando cerca de 200 milhões de litros do óleo na costa de Cape Town, na África do Sul. Por sorte, o vento forte evitou que a mancha alcançasse o litoral, minimizando os efeitos ambientais do desastre.

8 - Amoco Cadiz, França (março/1978)
Volume: 223 mil toneladas (123 piscinas olímpicas)
Um dos piores acidentes petrolíferos do mundo aconteceu em 1978, quando o supertanque Amoco Cadiz rompeu-se ao meio perto da costa noroeste da França. O vazamento matou milhares de moluscos e ouriços do mar. Esta foi a primeira vez que imagens de aves marinhas cobertas de petróleo foram vistas pelo mundo.

9 - M T Haven, Itália (abril/1991)
Volume: 144 mil toneladas (79 piscinas olímpicas)
Outro superpetroleiro, o navio gêmeo do Amoco Cadiz explodiu e naufragou próximo da costa de Gênova, matando seis tripulantes. A poluição na costa mediterrânea da Itália e da França se estendeu pelos 12 anos seguintes.

10 - Odyssey, Canadá (setembro/1988)
Volume: 132 mil toneladas (73 piscinas olímpicas)
O poço petrolífero localizado na província canadense de Newfounland explodiu durante uma operação de perfuração da plataforma americana Odyssey. Uma pessoa morreu e outras 66 foram resgatadas sem ferimentos.

Revista EXAME

terça-feira, 22 de junho de 2010

O paradoxo da capital da esperança


O paradoxo da capital da esperança

Aos 50 anos, Brasília tem poucos motivos para comemorações

HERBERT CARVALHO

Ao completar 50 anos de sua fundação, a mesma Brasília que ganhou do escritor francês André Malraux o título de Capital da Esperança vive um paradoxo. Para o Brasil e o mundo – que desde 1987 reconheceu, por intermédio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), os monumentos do arquiteto Oscar Niemeyer, dispostos sobre o Plano Piloto idealizado pelo urbanista Lúcio Costa, como Patrimônio da Humanidade –, a cidade construída em apenas três anos e seis meses (entre 20 de outubro de 1956 e 21 de abril de 1960) tornou-se o símbolo de um país integrado, mais desenvolvido e menos desigual, como almejava seu realizador, o presidente Juscelino Kubitschek.

Internamente, porém, para o atual Distrito Federal, que planejado para atingir 600 mil habitantes no ano 2000 chega ao meio século de existência com uma população superior a 2,6 milhões, a efeméride tem um sabor melancólico. Na área às margens do lago Paranoá e no interior do cinturão verde, que abriga as embaixadas e o núcleo dos poderes estabelecidos na capital federal, a degradação urbana toma a forma de congestionamentos, outrora inimagináveis em suas vias expressas. Ao mesmo tempo, nas cidades-satélites a pobreza, causada pelo incessante movimento migratório desvinculado de oportunidades econômicas, transforma moradores em clientes permanentes do assistencialismo de caráter eleitoreiro. O fenômeno, por sua vez, está na raiz da crise política desencadeada em novembro do ano passado, quando uma operação da Polícia Federal revelou imagens gravadas que retratavam a cúpula do Executivo e da Câmara Distrital repartindo dinheiro vivo por bolsas, paletós e meias.

Além de retirar o aparelho burocrático administrativo do governo central do ambiente conturbado das grandes metrópoles e distanciá-lo das pressões dos poderosos grupos econômicos sediados na região sudeste, a proposta de Brasília configurava uma nova concepção de cidade, mais humana, igualitária e previsível. Essa utopia social urbana, que pressupunha uma população de funcionários públicos bem alojados em locais próximos às repartições, se desfez na medida em que não conseguiu evitar a reprodução das mazelas nacionais, derivadas de um modelo de desenvolvimento caracterizado por desigualdades e contrastes profundos.

Enquanto o Brasil e os próprios brasilienses se interrogam sobre o futuro de uma “terra prometida”, que de acordo com o famoso sonho de dom Bosco (santo italiano nascido em 1815, fundador da Ordem dos Salesianos) verteria “leite e mel” e seria de “uma riqueza inconcebível”, Problemas Brasileiros – que exibiu na capa de suas primeiras edições, na década de 1960, como um apelo de modernidade, o traçado do Plano Piloto – resgata a saga da invenção de uma capital mediterrânea em um país continental que nasceu, e durante três séculos e meio permaneceu, deitado no berço esplêndido de sua faixa litorânea.

Nova Lisboa

A data do nascimento oficial do projeto de interiorização da capital é 1789. De acordo com o relato sobre a fundação de Brasília gravado em 16 imensas placas de mármore seladas nas paredes do Museu Histórico, localizado na Praça dos Três Poderes, foi na Inconfidência Mineira que surgiu a primeira proposta com esse teor. Os autos de devassa do movimento atribuem ao próprio alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, a assertiva de que “a capital se havia de mudar para São João del Rei, por ser aquela vila mais bem situada e farta de alimentos”.

A ideia específica da construção de uma cidade para a instalação da capital, porém, surge em 1807, quando dom João VI, acossado pelas tropas de Napoleão, decide transferir a sede do império de Portugal para o Brasil. Na ocasião, duas possibilidades se apresentaram diante dele: erguer uma cidade completamente nova – como São Petersburgo, na Rússia, e Washington, nos Estados Unidos – ou reformar o Rio de Janeiro, nos moldes da reconstrução de Lisboa levada a cabo pelo marquês de Pombal após o terremoto de 1755.

Como se sabe prevaleceu a segunda opção, diante das dificuldades de comunicação terrestre na época e por ser Portugal um império marítimo mercantilista, que fizera das cidades portuárias de Salvador, e em seguida do Rio de Janeiro, as sedes de sua colônia americana. Não faltaram, porém, vozes a aconselhar o príncipe regente não apenas a edificar uma nova capital, mas a fazê-lo especificamente no interior do continente, naquela que então era a capitania de Goiás. Um discurso no parlamento da Inglaterra – potência que tutelava o império português – faz referência a uma cidade que se chamaria Nova Lisboa, situando-a no Planalto Central do Brasil, ideia que é apoiada por Hipólito José da Costa: “Esse ponto central, próximo das vertentes de caudalosos rios que se dirigem para o norte e nordeste e para o sul e sudeste, tem pedra em abundância e madeiras de construção para toda sorte de edifícios”, escreveu o editor do “Correio Braziliense”, jornal por ele publicado em Londres entre 1808 e 1822.

Em documento elaborado em 1820 pelos representantes brasileiros nas cortes portuguesas a ideia é justificada por razões de segurança e para promover uma redistribuição demográfica: “Deste modo fica a corte ou assento da regência livre de qualquer assalto ou surpresa externa e se chama para as províncias centrais o excesso de população vadia das cidades marítimas e mercantis”. A vulnerabilidade dos núcleos litorâneos em caso de ataque tinha como exemplo a facilidade com que um século antes o corsário francês Duguay-Trouin se apoderara da baía de Guanabara com apenas alguns navios. O argumento seria decisivo também para que posteriormente o Paquistão e a Turquia construíssem Islamabad e Ankara como capitais afastadas da costa.

No período entre 1821 – quando a corte retorna a Portugal – e 1824 – ano da promulgação da Constituição do Império do Brasil – o assunto entra novamente em pauta. José Bonifácio de Andrada e Silva menciona em discurso na Assembléia Constituinte o nome Brasília para designar a capital a ser erguida em Goiás. Suas preocupações são as mesmas que norteariam durante mais de um século a discussão sobre a necessidade de interiorização do centro político e administrativo do país: segurança do Estado, povoamento do território, desenvolvimento do comércio interno e preservação da unidade nacional. Dom Pedro I, porém, não estava preparado para aceitar essas e outras sugestões – como a abolição gradual da escravatura e a implantação da siderurgia – do Patriarca da Independência, que acaba exilado por suas ousadias. O Brasil permanece, assim, voltado para a Europa e de costas para o interior de seu imenso território. No Segundo Reinado o historiador e diplomata Francisco Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro, em obra publicada em 1877 sob o título A Questão da Capital: Marítima ou no Interior?, denuncia a opção do Brasil de organizar-se sempre em torno de objetivos externos, característica do modelo agrário exportador que perdurou até a década de 1930.

Retângulo Cruls

A questão só passa da teoria à prática após a proclamação da República. A Constituição de 1891 traz a previsão de que uma área de 14 mil quilômetros quadrados no Planalto Central “será oportunamente demarcada para nela estabelecer-se a futura capital federal”. O texto fala também pela primeira vez em Distrito Federal – termo utilizado originalmente pelos constituintes americanos –, em vez de “município neutro”, como a sede do governo era designada no tempo do Império.

Em maio de 1892 o governo de Floriano Peixoto institui por decreto a “Comissão de Exploração do Planalto Central do Brasil”, cujo comando é entregue ao engenheiro belga Louis Cruls, diretor do Observatório do Rio de Janeiro. Integrada por geólogos e botânicos, durante quatro anos a comissão faz um levantamento sobre topografia, clima, geologia, fauna, flora e recursos materiais da área que a partir de 1895 passa a figurar nos mapas do Brasil como “retângulo Cruls ou futuro Distrito Federal”. Dentro dele, o vasto vale banhado pelos rios Torto, Gama, Vicente Pires e Riacho Fundo – onde hoje fica o Plano Piloto – é escolhido para a instalação da cidade, que só seria finalmente erguida seis décadas depois.

Primeiro civil a assumir a presidência da República, Prudente de Moraes não tem a pressa nem a visão geopolítica de Floriano, seu antecessor, que apresentava a mudança da capital como uma “necessidade inadiável”. O paulista que inaugura a longa hegemonia da oligarquia cafeeira paulista na direção do país, ao contrário, preocupa-se mais em não permitir que o poder escape de seu estado, já na época o polo dinâmico da economia brasileira. Engavetado, o projeto inicia um longo período de ostracismo, quebrado apenas no dia 7 de setembro de 1922, por ocasião do centenário da Independência, quando o governo do paraibano Epitácio Pessoa inclui, como parte das comemorações, a colocação da pedra fundamental da nova capital nas imediações da cidade de Planaltina.

Nas décadas de 1930-40 Goiânia torna-se a segunda cidade brasileira construída especialmente para ser a nova capital de um estado, a exemplo do que se passara com Belo Horizonte na virada do século 19 para o 20 (e ainda ocorreria com Palmas, no Tocantins, no final da década de 1980). Em paralelo a esses exemplos concretos, a mudança da capital federal continua a fazer parte das Constituições de 1934 e de 1946, ambas fruto de assembleias constituintes eleitas, numa clara indicação de que a maioria dos legisladores era favorável à ideia, não concretizada por falta de vontade política do Poder Executivo. Num período de dez anos, entre 1946 e 1956, novas comissões – desta vez chefiadas por militares – esquadrinham o retângulo Cruls para estabelecer a localização exata da nova capital a partir de fatores econômicos e científicos. Dessa forma, a questão está madura sob todos os aspectos quando Juscelino Kubitschek de Oliveira assume a presidência da República, em 31 de janeiro de 1956.

Meta síntese

O Brasil na metade da década de 1950 era um país que, ao se afastar de seu passado predominantemente rural, urbanizava-se, industrializava-se e voltava-se para sua imensa e esquecida porção oeste. Essas profundas transformações estavam expressas nas 30 diretivas do Plano de Metas adotado por Juscelino, que abrangiam cinco grupos, entre os quais energia, transportes e indústrias de base receberiam mais de 90% dos recursos alocados, em detrimento dos outros dois, alimentação e educação. Ao decidir abraçar a ideia da mudança da capital – o que, segundo o folclore político, ocorreu durante a campanha eleitoral, quando num comício em Jataí (GO) um eleitor questionou se o compromisso do candidato de respeitar a Constituição incluía realizar a transferência –, Juscelino transformou a construção de Brasília, que não integrava nenhum dos grupos, na meta síntese de todas.

Em abril de 1956 o projeto de lei da construção da nova capital dava entrada no Congresso Nacional. Boicotado pela União Democrática Nacional (UDN), maior partido de oposição ao governo – que, por sua vez, era sustentado pela aliança entre o Partido Social Democrático (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) –, é aprovado após renhida luta política e sancionado no dia 19 de setembro. O texto previa a organização de uma sociedade denominada Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil, ou simplesmente Novacap, cuja presidência foi entregue por Juscelino ao correligionário pessedista Israel Pinheiro. Subordinada apenas ao presidente da República, a Novacap surge com autonomia política e orçamentária para exercer as funções de mestre de obras do empreendimento. Fiel a seu princípio de não cortar os nós que pudesse desatar, ele destina à UDN um terço dos principais cargos da companhia. Antes disso, no mês de maio, já havia demitido o marechal José Pessoa da chefia da Comissão de Localização da Nova Capital, devido à orientação do militar de que o crescimento da cidade “devia se dar por estágios, através de sucessivos governos”. Considerando Brasília – nome finalmente adotado em contraposição a Vera Cruz, como queria o marechal – um assunto “sério demais” para ficar sujeito à “tradicional descontinuidade administrativa do Brasil”, Juscelino definiu a data da inauguração: seria antes do término de seu mandato e no dia de Tiradentes, em 21 de abril de 1960.

Equiparando seu gesto à oportunidade dada pelo papa renascentista Júlio II a Michelangelo para que pintasse o teto da Capela Sistina, Juscelino convida o arquiteto Oscar Niemeyer a projetar os principais edifícios públicos que hoje encantam os visitantes como obras de arte a céu aberto: o Palácio do Planalto, os edifícios do Congresso e do Supremo Tribunal Federal e o Palácio da Alvorada. Este último, residência oficial do presidente da República, o primeiro a ficar pronto, teve seu projeto inicial recusado por Juscelino, com a franqueza que lhe permitia uma amizade iniciada desde quando, prefeito de Belo Horizonte, contratara o arquiteto para modernizar o bairro da Pampulha: “O que eu quero, Niemeyer, é um palácio que daqui a cem anos ainda seja admirado”. Assim nasceram as famosas colunas em forma de leques invertidos, “as mais belas que vi depois das gregas”, no dizer de Malraux, cujas variações ornamentam também os palácios do Planalto e do Supremo Tribunal Federal.

Já o projeto urbanístico surge de um concurso entre a elite da arquitetura brasileira, vencido por Lúcio Costa com uma ideia extraordinariamente simples: seu desenho é o de uma cruz, com a linha vertical transformada em avenida ou eixo monumental – para a instalação da Praça dos Três Poderes, dos ministérios, da catedral e do Teatro Nacional – e a horizontal reservada para as residências dos funcionários públicos em superquadras que, protegidas do trânsito, seriam o local privilegiado da sociabilidade.

Realizar isso tudo no exíguo prazo estipulado, incluindo a formação de um lago artificial, previsto desde a comissão Cruls para proporcionar certo grau de umidade que amenizasse a inclemência do clima do cerrado, constituiu-se numa tarefa hercúlea executada apenas pela junção de dois fatores: o olho do “dono” – que durante a construção realizou 225 viagens aéreas entre o Rio de Janeiro e Brasília para inspecionar as obras – e a força de trabalho dos candangos, nome de origem africana aplicado aos milhares de operários vindos de todas as partes do país e submetidos a jornadas de até 16 horas, sob a vigilância atenta da Guarda Especial de Brasília, truculenta milícia constituída pela Novacap para reprimir qualquer movimento de rebeldia que resultasse em atraso no cronograma. Assim, às 9 horas do dia 21 de abril de 1960, sob o aplauso dos cariocas, Juscelino fechava solenemente os portões do Palácio do Catete (transformado em Museu da República) e voava uma vez mais para o Planalto Central. Embalado pelos acordes de uma Bossa Nova que começava a encantar o mundo e ao mesmo tempo em que os primeiros automóveis de fabricação nacional ganhavam as ruas, o Brasil exibia sua moderna capital, concretizando uma ideia antiga de 170 anos.

Cidades-satélites

Em seus primeiros anos, Brasília assistiu à renúncia de Jânio Quadros, à breve experiência parlamentarista do governo João Goulart e à chegada dos militares, após o golpe de 1964. Estes, apesar de cassarem os direitos políticos de Juscelino e submetê-lo a toda sorte de constrangimentos, mostraram-se simpáticos à nova capital por razões geopolíticas e apressaram a transferência da burocracia governamental que resistia a sair do Rio de Janeiro, consolidando também as ligações rodoviárias entre o Distrito Federal e os quatro pontos cardeais do país. No rastro das novas estradas desapareceu o vazio demográfico que significava o contraste entre os 50 habitantes por quilômetro quadrado no litoral, em 1950, e os míseros cinco na região centro-oeste, que rapidamente expandiu sua pecuária e as diversas lavouras do atual agronegócio, em terras que não valiam nada e hoje são negociadas a peso de ouro.

Se Brasília constituiu um investimento com rápido retorno para o país, em relação aos brasilienses a história mostrou-se diversa. A utopia de Lúcio Costa, que desejava ver o ministro e seu motorista morando ao lado um do outro, em uma cidade sem periferia, logo se desfez. Também estava previsto que dois terços dos candangos voltariam para seus estados depois do fim das obras, mas isso não ocorreu.

A primeira cidade-satélite surgiu precocemente, em maio de 1958, quando candangos resistiram à desocupação dos barracos em que viviam, resultado de inúmeras invasões, e cercaram Juscelino em um restaurante, exigindo uma solução. Acabaram transferidos para uma área distante 25 quilômetros do Plano Piloto, que fazia parte da desapropriada fazenda Taguatinga, nome que batizou o novo núcleo urbano. A chamada Cidade Livre, acampamento que serviu de base para os operários e devia ser demolida, tornou-se cidade-satélite com o nome de Núcleo Bandeirante. Logo a cidade de Planaltina, um dos três municípios goianos a contribuir com parte de seu território para formar os 5.802 quilômetros quadrados do atual Distrito Federal (os demais foram Luziânia e Formosa), foi absorvida como cidade-satélite. A estas vieram juntar-se, ainda na década de 1960, outras como Sobradinho, Gama e Brazlândia, todas fruto de invasões realizadas por antigos e novos migrantes. Uma dessas ocupações, a Vila Planalto, logrou resistir dentro do Plano Piloto e acabou por se transformar em um bairro residencial nos fundos do palácio onde despacham os presidentes da República.

Integrante de um país formado a partir de capitanias hereditárias e sesmarias, que nunca fez uma reforma agrária para valer, Brasília continuou a absorver parte do fluxo migratório do campo para as grandes cidades. Em consequência, na década de 1970 o governo local tenta controlar novas ocupações por meio da Campanha de Erradicação de Invasões (CEI), que transferiu 82 mil pessoas de barracos em diferentes pontos do Plano Piloto para um lugar distante 30 quilômetros, que incorporou a sigla e passou a chamar-se Ceilândia, até hoje a maior das cidades-satélites.

Promiscuidade

Com o tempo a expressão “cidade-satélite” adquiriu conotação pejorativa e foi substituída pela designação “região administrativa”, que no século 21 já se aplica a três dezenas delas. Todas padecem de graves problemas como violência urbana e transporte precário, além de caro. As mais recentes são resultado de assentamentos em terrenos cedidos nas décadas de 1980 e 1990 pelo governador Joaquim Roriz, que distribuía lotes como uma estratégia claramente eleitoreira. Nomeado em 1988, Roriz conseguiu a proeza de se eleger três vezes pelo voto popular, somando quatro mandatos que marcaram Brasília com cenas como esta: diante de tratores que iriam iniciar a demolição de barracos em áreas invadidas, ele chegava de helicóptero, garantindo a permanência daqueles que daí por diante engordariam seu curral eleitoral.

Após a eleição de 1960, na qual seus primeiros eleitores votaram apenas para eleger o presidente da República, Brasília passou todo o período da ditadura militar sem ter como exercer o direito do voto. Inicialmente teve oito prefeitos nomeados, o que continuou a ocorrer quando eles passaram a se chamar governadores, igualmente indicados pelo Palácio do Planalto. Sem votar também para vereador, deputado ou senador, durante muitos anos os eleitores do Distrito Federal não tiveram qualquer utilidade para seus títulos.

A Constituição de 1988 estabeleceu a autonomia política do Distrito Federal, que além de governador, deputados federais e senadores elege 24 deputados distritais, os quais cumprem um papel híbrido entre deputado estadual e vereador; estes não existem porque a Carta Magna veda expressamente a criação de municípios dentro do Distrito Federal, que por sua vez não possui Constituição, como os estados, e sim Lei Orgânica, típica de um município.

Essa unidade atípica da Federação teve sua política interna fortemente influenciada pelo poder econômico local, que se organizou historicamente em torno da especulação imobiliária. Devido à falta de um projeto de ocupação do solo, ao longo de cinco décadas terras públicas foram griladas por companhias, com a cumplicidade dos governantes. Essa promiscuidade entre autoridades públicas e interesses privados está na origem do escândalo que levou à prisão o governador José Roberto Arruda, afilhado político de Roriz, do qual foi secretário de Obras. O vice, Paulo Octávio, não por acaso um dos maiores empresários do mercado imobiliário, substituiu Arruda no Palácio Buriti – sede do governo local –, mas renunciou logo depois. Em sua ermida às margens do lago Paranoá, o padroeiro dom Bosco assiste à Brasília de seu sonho tornar-se um pesadelo sem fim previsível.

Revista Problemas Brasileiros

As fábricas vivas de medicamentos

Cresce o uso de animais transgênicos para produção de remédios

EVANILDO DA SILVEIRA

Arte PB

Em 2008, chegou às prateleiras das farmácias da Europa o primeiro medicamento produzido graças à utilização de animais transgênicos. Trata-se do ATryn, nome comercial da nova droga, indicada para tratar o tromboembolismo (ou trombose), doença provocada pela formação de coágulos no interior dos vasos sanguíneos. O antitrombótico é fabricado pela empresa americana Genzyme Transgenics Corporation (GTC) e distribuído pela dinamarquesa LEO Pharma para toda a Europa e o Canadá. É o resultado pioneiro de uma nova tecnologia – no caso, uma biotecnologia –, a transgenia, que começa a se consolidar no mundo todo, inclusive no Brasil. Pelo menos dez grupos de pesquisa no país estão criando cabras, vacas, galinhas, camundongos e até peixes transgênicos para a produção de medicamentos, o desenvolvimento de doenças humanas em animais para pesquisas ou o melhoramento genético de espécies de interesse econômico.

Transgenia nada mais é do que a inserção no genoma de um organismo, por meio de técnicas de engenharia genética, de um ou mais genes de outro indivíduo, que pode ser da mesma ou de espécie diferente da do receptor. Com essa tecnologia é possível, por exemplo, introduzir genes de porcos em seres humanos ou de vírus ou bactérias em plantas. Aquele que recebe o gene adquire características que antes não tinha. O uso dessa tecnologia começou em 1982, quando pesquisadores americanos das universidades de Washington, Pensilvânia e Califórnia produziram um camundongo (Mus musculus) que tinha o gene do hormônio de crescimento de um rato (Rattus rattus), que é uma espécie diferente. Como resultado o camundongo cresceu mais que o normal.

Hoje, já existem várias drogas de origem transgênica no mercado. Nenhuma delas, porém, é produzida por meio de animais – com exceção do ATryn – e sim de microrganismos. O exemplo mais antigo é o da insulina sintetizada por bactérias, que começou a ser comercializada em 1982. Apesar desses sucessos, atualmente a técnica ainda está mais desenvolvida na agricultura, na qual é empregada para criar alimentos resistentes a herbicidas, pragas e clima adverso, bem como torná-los mais nutritivos. Aos poucos, entretanto, começa também a ser usada no reino animal.

O ATryn, por exemplo, foi desenvolvido a partir de uma substância extraída do leite de cabras transgênicas. Para isso, foi introduzido no genoma desses animais um gene humano, construído artificialmente, responsável pela produção da antitrombina humana III (AIII), proteína que é o princípio ativo do novo medicamento. Por meio de uma técnica conhecida como DNA recombinante, os cientistas da empresa americana colocaram o gene no embrião das cabras nos primeiros momentos de sua formação. Posteriormente, a AIII é “fabricada” nas células mamárias do animal adulto. Cada cabra fornece, durante o período de amamentação, 3 litros de leite por dia, o que equivale à produção de cerca de 3 quilos de antitrombina humana III, já purificada, por ano.

Biorreatores

Espécies transgênicas como as cabras da GTC são conhecidas como biorreatores, verdadeiras fábricas de substâncias que podem virar medicamentos. Segundo o químico João Bosco Pesquero, diretor do Centro de Desenvolvimento de Modelos Experimentais para Medicina e Biologia (Cedeme) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), são normalmente animais domésticos de médio e grande porte, utilizados para a sintetização de proteínas humanas de ampla importância biológica e comercial, como enzimas, hormônios e fatores de crescimento. “Em geral a proteína de interesse é expressa no leite do animal, o que faz sua produção mais barata e eficiente”, explica. “Em 1997, o primeiro bovino transgênico, a vaca Rosie, desenvolvida nos Estados Unidos, dava leite enriquecido com a proteína humana lactoalbumina, que o tornava mais nutritivo que o produto natural. Há também pesquisas em curso voltadas para a produção de leite com proteínas necessárias ao tratamento de doenças como fenilcetonúria, enfisema hereditário e fibrose cística.”

A transgenia não serve, no entanto, apenas para a produção de medicamentos. Essa tecnologia tem várias outras aplicações. Ainda na área da medicina, ela pode ser empregada para a geração de animais capazes de desenvolver doenças humanas. “Essa é uma aplicação extremamente importante, pois para criar novas drogas necessitamos testá-las primeiro in vitro em células, depois em animais e finalmente em humanos”, explica Pesquero. “Para tanto, podemos fazer modelos animais transgênicos específicos para esses testes. Por exemplo, se sabemos que tal gene está relacionado ao aparecimento de determinada moléstia, podemos apagar o gene em questão ou aumentar o número de cópias, estudar o efeito na doença e testar as novas drogas para combatê-la.”

Esse tipo de pesquisa traz ainda como consequência positiva o uso racional de animais de laboratório em todo o mundo. “O surgimento de modelos transgênicos provocou uma redução do número de cobaias de forma geral, além de tornar possível a substituição de espécies mais próximas do homem, como primatas, por animais menores geneticamente modificados para ter as características específicas que se desejam estudar”, diz Pesquero. “No futuro, essa tendência de redução na quantidade de animais empregados deverá se acentuar em razão da maior especificidade dos modelos transgênicos desenvolvidos.”

O melhoramento genético de espécies de interesse econômico é outra das aplicações da transgenia. “Utilizando o bovino como exemplo, com o emprego das técnicas de manipulação gênica torna-se possível gerar animais com taxa de crescimento muito superior e de forma muito mais rápida que mediante o uso do melhoramento genético clássico”, explica Paulo Varoni Cavalcanti, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP). “Isso pode ser alcançado com a introdução de múltiplas cópias do gene do hormônio de crescimento no genoma de embriões bovinos. Esses animais teriam uma alta concentração desse hormônio durante o período de seu desenvolvimento, causando desenvolvimento corporal muito superior ao de qualquer outro indivíduo.”

Camundongos nocautes

Pesquero e Cavalcanti sabem do que falam. Ambos trabalham na produção de animais transgênicos. O primeiro começou as pesquisas durante seu estágio de pós-doutorado na Alemanha, entre 1992 e 1996. Desde então, não parou mais. Ele já publicou, até hoje, cerca de 140 trabalhos científicos, muitos deles utilizando os modelos animais gerados na Alemanha ou no Brasil. Entre os resultados mais importantes estão os obtidos com camundongos nocautes (indivíduos dos quais se apagou ou deletou um gene) para o receptor B1 das cininas, substâncias associadas a processos inflamatórios e hipertensivos e à obesidade. O trabalho pode levar a melhor entendimento dessas doenças e a possíveis novos tratamentos.

Pesquero retirou o gene do receptor B1 do genoma dos primeiros animais transgênicos que desenvolveu. “Com isso, eles se tornaram resistentes à obesidade induzida por dieta”, conta o pesquisador. “Podemos alimentá-los com dieta rica em gordura que não engordam.” Essa pesquisa teve início em 2000, e os resultados mais importantes foram publicados em 2008, em uma revista internacional. Depois desse trabalho pioneiro, Pesquero e seu grupo na Unifesp criaram o camundongo Vítor, nascido no dia 24 de dezembro de 2001. O roedor foi produzido com a duplicação do receptor B2 das mesmas cininas.

Hoje a equipe de Pesquero desenvolve camundongos para pesquisadores da própria Unifesp e de outras instituições, como o Instituto do Coração, da USP, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, de Brasília, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Até hoje, já foram gerados mais de 20 desses animais para cientistas de vários laboratórios do Brasil. Uma das vantagens dos transgênicos produzidos pelo grupo da Unifesp é seu preço. Pesquero não revela o valor cobrado pelos animais, mas diz que é muito inferior ao que é pago a laboratórios do exterior.

Um dos trabalhos mais promissores feitos sob encomenda pela equipe da Unifesp foi a criação para a Embrapa de uma fêmea de camundongo transgênico que produz no leite o fator IX humano, uma proteína responsável pela coagulação do sangue ausente nos hemofílicos. Em 2005, a ideia era produzir a proteína no camundongo e, se tudo corresse bem, usar a mesma tecnologia para gerar vacas clonadas transgênicas, que expressassem o gene humano para esse fator no leite.

Agora, é isso o que vêm tentando fazer a pesquisadora Sharon Lisauskas Ferraz de Campos e colegas da Embrapa. “Estamos desenvolvendo linhagens de células-tronco bovinas a fim de manipulá-las geneticamente e gerar vacas transgênicas que tenham em seu leite a molécula do fator IX”, conta ela. “Dessa forma, como as vacas produzem em torno de 25 quilos de leite por dia, poderemos recolher todo esse produto especial para que a indústria farmacêutica o purifique. Com isso, no futuro o Brasil poderá se tornar autossuficiente em fator IX humano, deixando de importar e, assim, economizando recursos.”

No caso de Cavalcanti, da USP, as pesquisas são com peixes, mais especificamente com o jundiá (Rhamdia quelen), uma espécie de bagre. “Comecei em 2004, quando realizei minha primeira iniciação científica no Centro de Biotecnologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel)”, conta. “O objetivo era introduzir no jundiá genes marcadores [genes de fácil identificação] para criar um modelo biológico geneticamente modificado. Ou seja, estávamos desenvolvendo nossos protocolos científicos para a geração de peixes transgênicos.” Seu orientador na época, Heden Luiz Marques Moreira, da UFPel, explica que o objetivo em si não era a produção de uma proteína específica, mas a obtenção de um método rápido e eficiente de gerar novos animais geneticamente modificados.

Segundo Moreira, isso significa que eles queriam que após criar uma linha transgênica fosse possível alterar as proteínas de interesse utilizando a mesma linhagem. “A ideia era que, se uma primeira proteína fosse produzida de forma estável e em níveis aceitáveis, uma segunda também poderia ser integrada no mesmo sítio do genoma em substituição à primeira”, explica. “Dessa forma, ao final do processo seria possível ter duas linhas transgênicas, uma derivada da outra. Não é questão de produzir uma única linhagem expressando duas proteínas diferentes (algo que chamam de duplo transgênico), mas de aproveitar um sistema e alterar a proteína produzida.”

Marcador fluorescente

Hoje os objetivos do trabalho foram ampliados, e Moreira está tentando desenvolver jundiás capazes de produzir a albumina sérica humana (HSA, na sigla em inglês), uma proteína que ocorre no plasma do sangue e é amplamente utilizada como estabilizante em produtos biológicos e farmacêuticos, tais como vacinas, e em revestimentos de dispositivos médicos. Além disso, ela é usada para tratamento de hipoalbuminemia (queda de albumina no sangue) e de choque traumático. Como peixes não produzem leite, os pesquisadores optaram por fazer o jundiá expressar a proteína no sêmen.

Cavalcanti participou ainda de uma outra pesquisa, dessa vez para a geração de galinhas transgênicas, sob a coordenação dos professores João Carlos Deschamps e Denise Bongalhardo, ambos da Ufpel. Primeiro, eles diluíram no esperma do galo o gene responsável pela produção de proteína verde fluorescente (GFP, na sigla em inglês), que serve como marcador nesse caso, ou seja, para saber se a transgenia deu certo. Depois o galo inseminou uma fêmea, da qual nasceu um pinto morto, mas que expressou a GFP. Ou seja, ele era transgênico, o que serviu para demonstrar que a técnica funciona. O próximo passo do grupo gaúcho é expressar uma proteína de coagulação sanguínea humana, como o fator IX, em ovos de galinhas.

Na outra ponta do país, mais precisamente em Fortaleza, na Universidade Estadual do Ceará (Uece), uma equipe liderada pelo professor Vicente José Freitas está desenvolvendo caprinos transgênicos, que receberam um gene que os tornou capazes de produzir no leite o fator estimulante de colônia de granulócitos humanos (hG-CSF, na sigla em inglês). “Trata-se de uma proteína encontrada em nosso organismo, responsável pela formação das células de defesa”, explica Freitas. “Por isso, ela é essencial para o bom funcionamento do sistema imunológico do ser humano.” O medicamento que for criado a partir do leite dessas cabras poderá ser usado em casos de imunodeficiência, como Aids, na recuperação de pessoas com câncer que fazem uso de quimioterapia ou das que tiveram infarto do miocárdio ou isquemia cerebral.

As pesquisas da equipe cearense começaram em 1999, quando Freitas foi procurado pelo pesquisador Oleg Serov, na época professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que já tinha criado camundongos transgênicos que sintetizavam o hG-CSF. “Como esses roedores são um bom modelo experimental, mas não têm leite em quantidade suficiente para beneficiamento e produção de medicamento, Serov nos propôs utilizarmos a cabra como modelo animal capaz de incorporar o gene e produzir leite o bastante para a realização de testes (in vitro e in vivo) e posterior desenvolvimento da droga”, conta Freitas.

Vantagens dos caprinos

O trabalho levou tempo. O primeiro caprino transgênico, um macho, só nasceu em 2006, mas morreu 19 dias depois, devido a uma nefrite (infecção nos rins) – ou seja, a morte não foi causada pelo fato de ele ser geneticamente modificado. Em 2008 nasceram mais três transgênicos, dois machos, um dos quais morto, e uma fêmea. “Assim, temos hoje um casal vivo, Camilla e Tinho, e ambos possuem o gene do hG-CSF”, diz Freitas. “A fêmea já teve a lactação induzida e verificamos que ela secreta o hG-CSF em seu leite.” Segundo o pesquisador, as cabras levam vantagem sobre outros animais no papel de biorreatores destinados a produzir grande parte das proteínas de uso médico. “Elas não raro parem três filhotes em cinco meses de gestação, enquanto um bovino tem apenas um filhote numa gestação de nove meses, e raros são os gêmeos”, explica.

O pesquisador Luciano Andrade Moreira, do Centro de Pesquisas René Rachou, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Belo Horizonte, resolveu adotar estratégia diferente para o uso de transgênicos. Em vez de produzir medicamentos, ele trabalha diretamente com espécies que causam doenças e as altera geneticamente para que se tornem inofensivas. O primeiro alvo foi o mosquito Aedes fluviatilis, que transmite o parasita Plasmodium gallinaceum, causador da malária em aves. “Nesse trabalho inserimos no genoma do mosquito um gene responsável pela produção de uma proteína no veneno de abelhas (a fosfolipase A2)”, conta Andrade Moreira. “Mostramos que os insetos que tinham esse gene bloqueavam o parasita da malária aviária. Essa proteína deve formar uma barreira no intestino do mosquito que não deixa o plasmódio penetrar na parede intestinal e, após formar um cisto, atingir sua glândula salivar e ser transferido para outra ave no momento da picada.”

Segundo Pesquero, pesquisas como essas e a produção de animais transgênicos são muito importantes para o Brasil. “Se não fizermos isso, em breve teremos de importá-los”, alerta. Ele lembra ainda que as mutações genéticas em animais feitas ao longo das últimas três décadas provocaram uma grande revolução no campo da biologia, permitindo a análise de vários aspectos da função dos genes em animais vivos. “Além disso, as pesquisas biomédicas baseadas nas alterações genéticas em modelos animais oferecem esperança para a cura das principais doenças que afligem a humanidade”, diz. “Portanto, o uso apropriado dos modelos de animais transgênicos propicia as ferramentas necessárias para o desenvolvimento da ciência, com grande potencial para gerar benefícios altamente significativos nos campos médico, biotecnológico e comercial.”

Revista Problemas Brasileiros

Cresce o apetite do dragão predador

Cresce o apetite do dragão predador

Multiplicam-se as queixas das áreas têxtil e de confecções contra a concorrência chinesa

ALBERTO MAWAKDIYE

Foto: Divulgação

Embora tão confiantes na retomada econômica do país como os colegas de outros setores produtivos, os empresários da vasta cadeia têxtil e de confecções do Brasil – somente na área industrial, são 28,8 mil companhias, que empregam cerca de 1,6 milhão de trabalhadores – ainda não veem motivos para comemorar. Eles continuam a queixar-se do que classificam de “concorrência predatória” dos artigos produzidos na China, vista como a principal responsável pela, de fato, assustadora ocupação do mercado doméstico por fabricantes estrangeiros.

Segundo a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), hoje, de cada dez peças vendidas no grande varejo, uma vem de fora. Há dez anos, a relação era de uma peça importada para cada 20 produzidas no Brasil. De 2004 a 2008, as importações nessa área cresceram 170% no país, sendo que naquele último ano o saldo da balança comercial do setor foi negativo em US$ 1,4 bilhão.

Por conta disso, os bons números projetados para 2010 não bastaram para acalmar os empresários do setor. A Abit espera, por exemplo, uma taxa de crescimento bastante razoável na cadeia de produção de tecidos, da ordem de 4%, suficiente para recompor parte das perdas verificadas em 2009, que foram de 6,7%. Na indústria de confecções, a expansão aguardada é de 3,7%, ante uma queda de 8% em 2009. Já no varejo, que também vendeu bem menos que o esperado durante os meses de crise, acredita-se numa taxa de crescimento de 6,5%.

A perspectiva está ligada ao aumento geral de empregos no país, de 2 milhões de novas vagas em todos os setores da economia. Mais pessoas com carteira assinada sempre significam, obviamente, maior consumo de roupas e têxteis em geral. A crescente inclusão de famílias das classes C e D no mercado de consumo deve ser outro impulsionador da recuperação.

Os problemas, porém, começam aí, segundo Fernando Pimentel, diretor superintendente da Abit. Se o crescimento do consumo será bom para a cadeia têxtil brasileira, será ainda melhor para a chinesa – que também vinha vendendo menos no Brasil (o volume total de importações no setor caiu de US$ 3,8 bilhões em 2008 para US$ 3,5 bilhões em 2009).

“A China já responde por 60% das confecções e 35% dos produtos têxteis importados vendidos no Brasil”, informa Pimentel. “Existe um mercado cativo no país e que só tende a crescer com o desenvolvimento do consumo doméstico. As fábricas chinesas vendem por um valor tão baixo, e temos tantos problemas estruturais para a formação de preços, que a concorrência acaba ficando desleal.”

A lista de dificuldades apresentada por Pimentel é clássica: vai da depreciação do dólar – que facilitou ao extremo a vida dos importadores – à excessiva carga tributária, do alto custo dos encargos trabalhistas à taxa de juros e ao ônus decorrente da precariedade da infraestrutura do país. Todos esses fatores teriam esvaziado em parte os efeitos do aumento das alíquotas de importação de confecções de 20% para 35% e de tecidos de 18% para 26%, fruto de antiga reivindicação do setor e adotado no final de 2007.

“É uma barreira insuficiente para deter produtos fabricados por uma indústria que pratica diversas formas de dumping comercial, cambial, social e ecológico”, afirma o dirigente empresarial. E, realmente, o que fazer para conter a voraz e pouco gastadora China? De acordo com estimativa da Abit, o custo da mão de obra brasileira é 367% superior ao da chinesa. Além disso, os gastos com encargos financeiros são 292% maiores e as despesas com depreciação de imóveis e maquinário (tabeladas pelo governo e empregadas para dedução no imposto de renda) são 68% mais elevadas no Brasil.

Somadas ao câmbio artificialmente desvalorizado naquele país, essas vantagens chinesas fazem com que a diferença de preços no mercado brasileiro chegue, por exemplo, a 133% no vestuário de malha, a 56% no tecido de malha, a 93% em calças jeans e a 30% no tecido denim. Enquanto o Brasil importa vestuário da China a US$ 13,63 o quilo, compra de outros países a US$ 19,73. Os chineses vendem, enfim, por um preço 30,91% menor.

“Esses percentuais têm de ser levados em conta”, destaca Pimentel. “Precisamos de melhores condições de trabalho para enfrentar de maneira isonômica todas essas variedades de dumping, que tornam a concorrência estrangeira mais competitiva de maneira injusta.”

Pimentel acrescenta que o “cenário de invasão” se mostra ainda mais grave quando se constata quanto a indústria têxtil brasileira é dependente do mercado interno. De fato, com um imenso e protegido mercado à disposição até os anos 1990, o Brasil, embora situado entre os dez maiores produtores têxteis do mundo, apresenta ainda o insignificante índice de 0,2% do comércio mundial do produto, apesar dos esforços do governo e das entidades do setor para reverter esse quadro.

O Programa Estratégico da Cadeia Têxtil Brasileira (Texbrasil), liderado pela Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil) em parceria com a Abit, está, por exemplo, tentando capacitar uma legião de empresas pequenas e médias dos mais variados nichos a participar do mercado externo – elas são, por enquanto, apenas pouco mais de mil no âmbito do programa. “Estamos focando principalmente mercados que descobrimos apreciarem a moda brasileira, como os de alguns países do Oriente Médio”, diz Maurício Borges, diretor de negócios da Apex. “Certamente conseguiremos cumprir a meta de exportar US$ 572 milhões em 2010.”

Descompasso

Diga-se que há ainda outro fator a complicar a situação da indústria brasileira, reconhecido com preocupação pelos empresários e cuja origem nada tem a ver com a China, já que é genuinamente nacional. Pelo menos desde meados da década de 1990, a produção local de têxteis tem sido insuficiente para atender as necessidades internas de consumo, que cresceram com a estabilização da moeda na esteira do Plano Real – de passagem, isso explica o porquê de o Brasil também exportar tão pouco. No período entre 1995 e 2008, a renda média per capita do brasileiro elevou-se em nada menos que 22,6%, índice maior que o próprio crescimento populacional, que foi de 19,3%.

O descompasso entre produção e consumo abriu caminho para o avanço dos produtos importados – na verdade, uma avenida, que vem se alargando. Segundo o relatório “Brasil Têxtil 2009”, preparado pelo Instituto de Estudos e Marketing Industrial (Iemi), a produção brasileira do setor por habitante, em 1995, foi de 8,3 quilos, e o consumo, de 8,7 quilos – uma defasagem ainda relativamente pequena. Só que, desde então, essa diferença nunca mais parou de crescer. Em 2008, a relação já tinha alcançado 9,6 quilos produzidos para 12,7 quilos consumidos.

Ou seja, enquanto a produção por habitante cresceu 15,7%, o consumo se elevou 46% em pouco mais de uma década. Essa diferença significa não só que parte do consumo foi suprida pelas importações, como também que, sem a presença delas – como acontecia antes da abertura da economia, no começo dos anos 1990, quando a importação se resumia a poucos artigos de luxo e a um ou outro insumo ou matéria-prima –, muitos brasileiros teriam, hoje, de dar um jeito de fazer roupas em casa para se vestir.

“A triste verdade é que a indústria têxtil brasileira perdeu, há tempos, a capacidade de acompanhar o crescimento da demanda”, afirma Sylvio Mandel, presidente da Associação Brasileira do Varejo Têxtil (Abeim). “E isso não apenas no que diz respeito à quantidade global. Há segmentos que hoje mal são atendidos, como os de malharia sintética, de jaquetas de náilon e poliéster e de roupas de inverno em geral.”

Segundo Mandel, os segmentos em que o Brasil continua relativamente competitivo são, por exemplo, o de confeccionados de algodão, como jeans e camisetas –em que predomina a gigante catarinense Hering –, e os de malhas de lã e de tricô cashmere, com grande produção em cidades serranas de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. A indústria nacional responde também por parte significativa das vendas de tecidos de algodão puro e de artigos de cama, mesa e banho (a mineira Coteminas até já comprou empresas no exterior) e pontifica em roupas de verão, como bermudas e assemelhados.

Ou seja, o país ainda vai bem nos segmentos que produzem a partir de fibras naturais, certamente por ser hoje mais do que autossuficiente na produção de denim e de algodão (nesse caso, depois de ter perdido essa posição na virada dos anos 2000) e estar bem situado na produção de lã natural, da qual, aliás, não necessita muito, por razões climáticas. Em contrapartida, patina nos segmentos que utilizam preferencialmente fibras sintéticas, cuja produção pelas indústrias de base é ainda pequena ou mesmo inexistente em algumas modalidades, além de obviamente mais cara que a chinesa, por exemplo.

O Brasil também se tornou razoavelmente competitivo na indústria de grifes, com marcas como Marisol, Poko Pano, Iodice e a própria Hering, dentre outras, competindo com expoentes do setor têxtil mundial em seus próprios e exclusivos territórios.

A ironia nessa história toda é que a indústria têxtil brasileira se preparou como poucas para enfrentar os rigores da globalização. Já prevendo o pior, entre 1990 e 2008 investiu, por exemplo, US$ 13 bilhões apenas na aquisição de máquinas e equipamentos, muitos deles importados de centros produtores de ponta, como França, Itália e Alemanha – o que contribuiu, por tabela, para a estagnação da pequena indústria brasileira que atendia esse setor.

Os sistemas de produção foram atualizados nas empresas dotadas de capital, laboratórios modernos foram implantados em universidades e em institutos de pesquisa – alguns deles capazes de lidar até com nanotecnologia para o desenvolvimento de fios especiais – e novos polos fabris surgiram através do país, de modo a baratear os custos de fabricação e aproximar os produtores do conjunto de consumidores.

Centrado basicamente na fabricação de fios, em que já tinha tradição, mas não volume e tecnologia, o nordeste, por exemplo, responde hoje por 20,6% dos têxteis brasileiros. A maior região produtora continua sendo o sudeste, com 46,1%, seguido pela região sul, com 29,5%.

Um grande esforço também foi despendido na atualização e mesmo na criação de novas tendências em tecidos e vestuário, com ênfase no desenvolvimento de design próprio. Ao mesmo tempo, cursos de todos os tipos se multiplicaram pelo país para atender tanto os setores de engenharia e produção têxtil como o de moda propriamente dito. Apenas o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) de São Paulo mantém 72 cursos ligados à área de moda, nas mais diferentes especializações.

Porém, se todos esses investimentos bastaram para elevar a qualidade média dos artigos têxteis brasileiros, não foram suficientes para aumentar o volume de produção, pelo menos até um nível que permitisse manter a uma distância um pouco mais segura os fabricantes estrangeiros. E a razão é um segredo de polichinelo para o pessoal do setor.

O Brasil é ainda um dos pouquíssimos países do mundo a manter uma cadeia produtiva têxtil rigorosamente completa, que vai do fornecimento de algodão, lã e couro e da fabricação de fios e fibras sintéticas ao processamento em tecelagens, malharias e estamparias, além de incluir um poderoso segmento de moda e varejista – conjunto do qual as nações desenvolvidas abriram mão há décadas. O ramo confeccionista – o mais estratégico de todos depois da indústria de marcas – apresenta, no entanto, uma escala de produção pequena e para lá de fragmentada, devido ao fato de 96% das empresas serem de pequeno e médio porte, com até 99 empregados.

Trata-se de uma herança do passado protecionista e que explica o número assombroso de indústrias têxteis em atividade no Brasil, 28,8 mil. Dessas, nada menos que 24,3 mil pertencem ao setor de confecção. Se essa profusão de empresas fez do país o sexto maior produtor têxtil do planeta, e do segmento confeccionista propriamente dito o segundo maior empregador da indústria de transformação brasileira, responsável por 18,6% do Produto Interno Bruto (PIB), pouco está ajudando o país a se afirmar como realmente competitivo nesse setor, agora que ele precisa desesperadamente disso.

De fato, boa parte das confecções não tem capital para a renovação de maquinário e a contratação de mão de obra qualificada (ou que ao menos seja formal) e vegeta num sistema de produção ainda bastante rudimentar. E constitui, na verdade, o gargalo de demanda para maiores investimentos nos elos anteriores e posteriores da cadeia produtiva, como a produção de fios ou de tecidos e a indústria do design.

Pior: por causa de sua pouca exigência no que tange à qualidade, as confecções se tornaram o sustentáculo da espécie de autofagia que também tomou conta do setor têxtil brasileiro, depois que este decidiu, por meio da mão invisível do mercado, mas com uma boa ajuda de benefícios fiscais, espraiar-se pelo país, quase sempre com poucos investimentos em tecnologia e focando principalmente a redução de custos em troca do aumento da empregabilidade local.

“Como se não bastassem as importações chinesas, temos de lutar internamente com outros estados. São Paulo não pode continuar vendo empregos e riquezas migrarem para outros lugares desse jeito”, esbraveja Ronald Masijah, presidente do Sindicato das Indústrias do Vestuário do Estado de São Paulo (SindiVestuário), segundo o qual o estado já perdeu 20% de participação no mercado nos últimos anos por conta dessa guerra fiscal. Ele quer que o governo paulista pague na mesma moeda, reduzindo também os impostos para o setor – uma medida que, obviamente, só serviria para aprofundar a briga.

Potencial pouco explorado

Para muitos especialistas na área têxtil, a única chance de o Brasil não acabar devorado pela concorrência chinesa e manter mais ou menos intacta sua cadeia produtiva – grande geradora de empregos –, arriscando-se também um pouco mais na exportação, é tentar incorporar a expertise que já conseguiu no segmento de moda e design à indústria propriamente dita.

De fato, o país hoje já é um competitivo peso médio na indústria planetária da moda, do que um evento badalado como a São Paulo Fashion Week, realizada duas vezes por ano, é apenas um exemplo. Na versão Inverno 2010 – que, para efeito de mercado, é promovida no verão –, dezenas de estilistas brasileiros apresentaram suas coleções para um público proveniente de diversas partes do mundo. Festivais de moda similares (embora, naturalmente, bem menos concorridos) já acontecem também no país inteiro.

“O Brasil tem uma forte indústria de estilo, centros de pesquisa, um parque produtivo imenso e relativamente bem distribuído, além de identidades regionais que poderiam ser mais bem exploradas. Se conseguirmos juntar tudo isso, seremos muito mais competitivos”, afirma Giuliano Donini, presidente da catarinense Marisol e um dos principais expoentes do fórum Santa Catarina Moda Contemporânea, cujo objetivo é o desenvolvimento do setor têxtil naquele estado.

Uma vantagem comparativa do Brasil é a enormidade de cursos na área têxtil e de moda que surgiram nos últimos anos, e em praticamente todas as cidades mais importantes. Eles têm formado milhares de especialistas em áreas tão distintas como estilo e design, modelagem, marketing e negócios ou engenharia de produto.

“A formação profissional é fundamental para a profissionalização e para o crescimento do setor, além de ser reflexo do amadurecimento do mercado têxtil e de moda brasileiro”, diz Tatiana Putti, coordenadora de desenvolvimento da área de moda do Senac São Paulo. “Esses cursos serão cada vez mais essenciais para a difusão de conteúdos que atendam a indústria têxtil e de confecção, criando novos horizontes para ela.”

Revista Problemas Brasileiros

O boi brasileiro é imbatível

O boi brasileiro é imbatível

Rebanho bovino do país bate recordes de produção e de vendas externas

NILZA BELLINI

Foto: Nilza Bellini

Com um rebanho de quase 200 milhões de cabeças e faturamento de mais de US$ 28 bilhões por ano, a bovinocultura representa a maior fatia do pujante agronegócio brasileiro, além de responder por cerca de 7,5 milhões de empregos. No ano passado, em função da restrição ao crédito e da queda no consumo, ainda reflexos da crise econômica que teve início em 2008, houve redução de exportações de carne in natura de 23% (de US$ 5,3 bilhões para US$ 4,1 bilhões). Passado esse período difícil, no entanto, a retomada do comércio mundial da carne brasileira já vem ocorrendo, como mostram os resultados dos dois primeiros meses deste ano.

A receita das exportações do setor em fevereiro de 2010 foi de US$ 973 milhões, o que representou um aumento de 24,5% em relação ao mesmo mês de 2009 (US$ 781 milhões). “Isso é reflexo da demanda antes reprimida sobretudo de dois países, o Irã e a Rússia”, diz Otávio Hermont Cançado, diretor executivo da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec). “O Irã é o segundo maior importador de carne bovina in natura do Brasil e paga melhor que o primeiro, a Rússia”, explica. “A demanda iraniana no primeiro bimestre do ano elevou-se em 216% sobre os valores faturados no mesmo período do ano anterior, e a da Rússia subiu 35%”. Para o final de 2010, a Abiec prevê um crescimento total de 10% a 15% na receita das exportações.

Ao mesmo tempo, a cadeia produtiva do couro, que abrange os setores de curtumes e calçados, gera mais de 500 mil empregos e movimenta receita superior a US$ 21 bilhões por ano. As exportações brasileiras de couros somaram US$ 234 milhões nos dois primeiros meses deste ano, registrando crescimento de 59,18% em relação ao mesmo período de 2009. O cálculo é do Centro das Indústrias de Curtumes do Brasil (CICB), com base na prévia da Secretaria de Comércio Exterior, do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Em fevereiro, os embarques foram de US$ 130 milhões, representando um aumento da ordem de 75,68%, ante o mesmo mês do ano passado e de 25% em relação a janeiro de 2010.

A demanda pela carne brasileira, que mantém o país no primeiro lugar entre os exportadores mundiais, não decorre, apenas, da retomada da economia. Nesta última década, a pecuária deixou de ser uma atividade defasada tecnologicamente para incorporar modernizações em todos os seus aspectos: da seleção genética das matrizes até as metodologias de recuperação de pastos e desenvolvimento sustentável, do combate às doenças como a febre aftosa até sistemas de rastreabilidade capazes de garantir o controle total sobre a história do animal destinado à exportação.“Tudo caminha para tornar a carne brasileira um produto destacado, com valor agregado, e não simples commodity”, diz Lygia Maria Pimentel, veterinária e consultora de mercado da Scot Consultoria, empresa de coleta e análise de informações de mercado para o campo.

Lygia observa, porém, que o caminho a percorrer ainda é longo. Atualmente, o Brasil cria 1,16 cabeça de gado por hectare de pasto, o que é pouco quando se leva em conta a tecnologia disponível para o campo. Mesmo assim, esses números colocam a média nacional bem acima da mundial, que é de 0,4 cabeça por hectare. “Somos exemplo para outros países, mas quando as práticas de manejo já disponíveis forem realmente adotadas será possível quase quadruplicar a produção”, afirma ela.

Vale lembrar que a criação de gado no Brasil é, sobretudo, de pasto. O confinamento, sistema em que os bovinos ficam fechados em piquetes ou currais e os alimentos e a água são fornecidos em cochos, é usado apenas na fase de produção que antecede o abate, o que corresponde, em geral, a 8% da vida do animal, ou seja, 75 dias dos 30 meses que ele vive em média. Essa modalidade é usada na época seca do ano e exige investimentos e logística, uma vez que a produção regional dos grãos que servirão de alimento e os frigoríficos com abatedouro que adquirirão o gado precisam estar situados a razoável proximidade da fazenda, para que haja compensação econômica.

A notoriedade do gado brasileiro tem provocado reação dos concorrentes, o que muitas vezes prejudica nosso comércio externo. Nenhum outro país, porém, tem quantidade ou preços mais competitivos que o Brasil, que apresenta ainda um grande potencial de expansão. A China, embora disponha de uma grande área territorial e um dos consumos mais baixos do mundo, não tem recursos hídricos para intensificar a exploração da pecuária e promete tornar-se um forte cliente brasileiro. A Europa enfrenta problemas de espaço e luminosidade. Produtores menores, como a Irlanda, fazem eventualmente pressão contra a importação de carne brasileira, como aconteceu no final de 2007, quando nossas vendas para a Europa foram embargadas durante algum tempo.

Sustentabilidade nos pampas

A pecuária evoluiu nesta década graças à tecnologia desenvolvida pela iniciativa privada e, principalmente, pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que desde sua criação, em 1973, estuda o segmento. Hoje, o rebanho nacional de gado de corte é de aproximadamente 137,5 milhões de cabeças. Porém, ainda há arestas a aparar. Para toda a cadeia produtiva da carne se organizar eficientemente no Brasil, é necessário não só implementar uma forte política de incentivo ao pecuarista e à indústria como estimular ainda mais a pesquisa científica.

No sul do país, em particular no Rio Grande do Sul, a pecuária sempre foi feita sobre pastagens naturais, num ecossistema único no planeta, com uma extensa diversidade vegetal, que recebe em nosso país o nome de bioma pampa e é responsável pela alimentação de cerca de 90% do rebanho de produção de carne daquele estado. São campos que se estendem para além das divisas territoriais, até a Argentina e o Uruguai. Nenhum dos três países, até recentemente, deu importância a um manejo correto do meio e a sua recuperação. Foi a Embrapa Pecuária Sul, unidade da empresa ligada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), que iniciou um importante estudo sobre o tema, ainda em desenvolvimento.

Daniel Montardo, chefe adjunto de pesquisa, desenvolvimento e inovação da Embrapa Pecuária Sul, alerta para o fato de que os pampas não têm o mesmo potencial produtivo das pastagens cultivadas, mas ainda assim permitem a exploração econômica aliada à sustentabilidade, já que não são resultantes de desmatamentos, mas a vegetação original daquela região. Ela persiste durante todo o ano, sem necessidade de semeadura, o que traz vantagens econômicas para o pecuarista, que pode diminuir seus gastos com a alimentação do rebanho. Com manejo adequado, segundo Montardo, é possível reduzir o uso de ração, pelo menos durante os seis meses da “estação quente”, e baratear o custo da criação. No período mais frio, o campo nativo fica crestado pela geada. Para resolver o problema, estuda-se a introdução de espécies de plantas que ofereçam uma concentração de nutrientes adequada. “A ideia é manter a biodiversidade, por meio de manejo correto e preservação do conjunto de espécies existentes, sem grande adubação, mas com a inclusão de outras variedades naturais”, diz ele.

A questão da sustentabilidade se tornou prioridade no Brasil não apenas por consciência ecológica dos agroindustriais brasileiros, mas por pressão externa. Organizações não governamentais eventualmente veiculam na mídia europeia anúncios-denúncia que sugerem evitar o consumo de carne brasileira, de modo a não contribuir (segundo os ativistas) para a derrubada da floresta amazônica. Esse tipo de pressão fez o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) buscar alternativas para evitar a continuidade do desmatamento e a expansão da fronteira pecuária na Amazônia. Desde o ano passado, o agente financeiro adotou novas exigências para concessão de financiamentos aos frigoríficos, que estão obrigados a comprovar sua adesão ao sistema de rastreabilidade.

A vida do gado no computador

O engenheiro agrônomo Márcio Vinícius Ribeiro de Moraes, diretor da Pantanal Certificadora e Identificadora, empresa autorizada pelo Mapa a identificar e certificar bovinos de acordo com as normas impostas pelos importadores para a compra da carne brasileira, explica que nenhum quilo de carne pode ser exportado se o gado correspondente não tiver sido rastreado. Para isso, o bezerro recebe uma espécie de brinco ou button, que é fixado na orelha do animal e contém um código de barras com informações sobre sua origem, sexo, raça e condição sanitária, além da produção e da produtividade das fazendas por onde passou. Por enquanto, cerca de 3 mil propriedades pecuaristas realizam esse controle no Brasil, para poder vender bois para a indústria exportadora.

O sistema, chamado Serviço Brasileiro de Rastreabilidade da Cadeia Produtiva de Bovinos e Bubalinos (Sisbov), é gerido pelo Mapa. O procedimento exige o credenciamento de um médico veterinário, constantemente avaliado e monitorado pelos auditores do governo federal. É esse profissional que faz as vistorias nas propriedades rurais e as relata ao ministério, para que sejam acrescentadas às informações que constam do código de barras.

Em âmbito mundial, as origens desse sistema remontam a 1995, após o registro de um episódio de intoxicação humana por salmonela na Inglaterra. Em 1999, na Bélgica, cientistas descobriram que a carne bovina estava contaminada com dioxina, uma substância tóxica derivada de processos industriais e que poderia estar na ração que alimenta o gado. Contudo, a gota de água para a implantação da rastreabilidade foi a notícia da contaminação de carne canadense pelo mal da vaca louca, doença provocada sobretudo pela ingestão de ração com restos animais.

No Brasil, esse “passaporte” da carne, que dá garantias quanto ao registro, controle, identificação e inspeção dos animais e seus produtos, vem sendo exigido pelos importadores desde 2000. Aqui o gado é totalmente vegetariano e, portanto, a doença da vaca louca é praticamente impossível. Contudo, dois casos emblemáticos reforçaram essa exigência: em 2005, um foco de febre aftosa em Mato Grosso do Sul e no Paraná e, em 2008, a notícia da adulteração de laticínios com soda cáustica, formol e água oxigenada. Além do controle sanitário, os importadores exigem que os animais cujos dados constam do sistema do Sisbov não sejam criados em locais que constem da relação de áreas embargadas do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) devido a desmatamento nem da “lista suja” do Ministério do Trabalho e Emprego e que não tenham origem em fazendas condenadas por invasão de terras indígenas, violência agrária ou grilagem de terras. Todos os países da União Europeia, além de Chile, Albânia e Suíça, estabelecem a rastreabilidade para a importação da carne. Outras nações já acenaram com a possibilidade próxima da imposição, como Rússia, Japão, China, Egito e outros.

O controle do desmatamento

A cada ano, 43,1 milhões de cabeças de gado são abatidas no Brasil. A produção anual de carne in natura está estimada em 9,15 milhões de toneladas, e a exportação em 2 milhões de toneladas. O consumo per capita de carne no Brasil é bastante superior ao da União Europeia: 36,7 quilos, enquanto na Europa é de cerca de 17 quilos. Existem 225 milhões de hectares de pastagens espalhados pelo país, 750 indústrias frigoríficas de médio e grande porte, 560 indústrias de curtume e 4,2 mil empresas fabricantes de calçados. A grande maioria dos animais (85%) está livre da febre aftosa. A principal meta das associações de criadores, agora, é reduzir ao mínimo a degradação ambiental na Amazônia.

A pecuária aparece como a principal causa de desmatamento do bioma amazônico, que se espalha por nove estados brasileiros: Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão. O engenheiro agrônomo Judson Ferreira Valentim, chefe geral do Centro de Pesquisa Agroflorestal do Acre, da Embrapa, e membro do conselho diretor da Oscip Amigos da Terra – Amazônia Brasileira, diz que o grande problema da pecuária na Amazônia ainda é o baixo nível tecnológico da atividade na maioria das propriedades.

“De qualquer forma, a situação melhorou bastante nos últimos anos”, diz ele. Em 2009, o Ministério do Meio Ambiente anunciou dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), com a menor taxa de desmatamento da Amazônia desde 1988: um recuo de 45% no período de 2008 a 2009, em relação a 2007-2008. “Houve um aumento da eficiência das ações de controle governamentais”, diz Judson. “O governo identificou 36 municípios onde o desmatamento era intenso e os puniu com restrições a financiamento. Além disso, a criação de novas tecnologias, como a eletrificação de cercas por painéis de energia solar, barateou a implantação de sistemas de manejo e rotação do gado.”

Judson observa que 70 milhões de cabeças são criadas na Amazônia em 61 milhões de hectares de pastagens nativas e cultivadas. “Com o uso adequado de tecnologias já validadas pela Embrapa em diferentes condições ambientais, é possível converter os atuais sistemas de produção extensivos em sistemas intensivos capazes de sustentar um crescimento de 175% do rebanho atual de bovinos e outros, sem necessidade de desmatar novas áreas”, afirma ele. “O que se discute, agora, é como pagar melhor o produtor que adotar essas tecnologias”, diz.

A predominância do nelore

No mundo, há aproximadamente mil raças de bovinos, das quais 250 têm alguma relevância. No Brasil, são cerca de 60 as que podem ser exploradas comercialmente. Elas podem ser divididas em três grupos: para produção de leite, de carne ou com dupla aptidão (corte e leite). Com exceção de algumas regiões da Amazônia e do sul do país, a raça mais popular no Brasil é o nelore (ou anelorado, resultante de cruzamento), cujo rebanho, de cerca de 110 milhões de cabeças, corresponde a 80% do total de gado de corte. Da família zebuína, o nelore tem origem indiana e chegou ao país ainda no século 19, pelo porto de Salvador.

André Locateli, gerente executivo da Associação dos Criadores de Nelore do Brasil, conta que na Índia, onde o boi é sagrado, a raça é chamada de ongole. No Brasil, ficou conhecida como nelore porque as primeiras reses que vieram para cá foram embarcadas num antigo porto indiano que tinha esse nome. Depois, já no início do século 20, algumas cabeças que chegaram ao Rio de Janeiro foram se multiplicando, passando a ser criadas também em São Paulo e Minas Gerais e, em 1938, foi possível dar início ao registro genealógico da raça no Brasil. As últimas importações de reprodutores de nelore da Índia aconteceram no começo da década de 1960. A partir daí foram proibidas pelo governo, por razões sanitárias.

Como tem pelo curto e grosso, o nelore resiste bem ao calor e aos parasitas. Além disso, consegue extrair muitos nutrientes de capins grosseiros, pouco atraentes para outras raças, como as europeias. As fêmeas são excelentes mães e, por sua rusticidade, são a base para cruzamento com todas as variedades criadas no Brasil. Locateli explica que o nelore tem uma fisiologia diferente do gado europeu: sua gordura fica embaixo da pele, restrita à área externa ao músculo, enquanto nas raças europeias a gordura é intramuscular, o que contribui para maior maciez da carne. Durante muito tempo essa característica fez o nelore ser menos valorizado, mas hoje, com técnicas de melhoramento genético e mudança de hábitos alimentares, sua carne magra tornou-se bastante prestigiada e é exportada para quase 150 países.

A novidade entre os criadores, agora, é a compra de embriões, já autorizada pelo governo, que permitirá um “refrescamento” do sangue e o surgimento de uma linhagem genética nova de nelore, segundo informa Locateli. Essa medida deverá ampliar o percentual de venda de sêmen de nelore para inseminação, que, em 2009, correspondeu a 51% desse mercado. Em segundo lugar, com 25%, ficou a venda de sêmen de angus (e de red angus), raça europeia originária do norte da Escócia. Por enquanto, a angus é a mais testada. Em cruzamentos com nelores nascem reses que podem ser abatidas jovens – uma exigência do mercado moderno.

O fato é que a complexidade desse setor, em todos os seus aspectos, exige cada vez mais da cadeia produtiva e dos cientistas brasileiros. O improviso foi abandonado de vez e em seu lugar o que se vê é o requinte e a sofisticação técnica. E, com essas vantagens competitivas, o país caminha para se tornar imbatível no mercado mundial.

Leite também é exportado

O leite é um dos mais importantes alimentos para a nutrição humana. Segundo cálculos da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO, na sigla em inglês), serão produzidos no mundo, em 2010, cerca de 578 bilhões de litros. A Confederação Brasileira de Cooperativas de Laticínios (CBCL) estima que, desse montante, 28,6 bilhões serão ordenhados no Brasil, o que coloca nosso país no sexto lugar entre os maiores produtores globais.

Vicente Nogueira Netto, diretor da CBCL e presidente da Federação Pan-Americana de Leite, explica que o setor foi beneficiado por recentes medidas do governo relativas às compras externas, que incluíram, entre outras, a adoção de mecanismos de proteção aceitos pela Organização Mundial do Comércio (OMC). Em 2008, o Brasil alcançou um saldo positivo de US$ 300 milhões – foram US$ 540 milhões em exportações, invertendo a tendência anterior. “Em 2009 voltamos a ter déficit, mas posso afirmar que essa foi apenas uma eventualidade”, diz Nogueira Netto, creditando os problemas à crise mundial. “Avançamos bastante em termos de qualidade, tanto da genética bovina quanto de outros elos da cadeia produtiva”, afirma ele.

Cerca de 80% do leite brasileiro vem da agricultura familiar, que, atualmente, mantém estrutura para resfriar o produto imediatamente após a ordenha. O manejo é também um dos principais fatores para explicar o aumento da produção, uma vez que o leite, por ser altamente perecível, já não se perde na etapa do transporte.

O crescimento do número de indústrias de derivados lácteos e o aprimoramento de suas atividades influenciaram decisivamente esse processo. Sob fiscalização rigorosa dos órgãos de controle de higiene alimentar, a cadeia produtiva brasileira exporta mais de 40 tipos de queijos, iogurtes e outros lácteos.

A melhoria na qualidade de vida do brasileiro é outro fator que deve ser levado em conta. No início desta década, o consumo per capita no país não ultrapassava 98 litros. Hoje, atinge 148 litros por habitante/ano, um índice considerado razoável, embora a recomendação da Organização Mundial da Saúde para países em desenvolvimento seja de 200 litros por ano.

O gado nelore não é adequado para a produção de leite. As principais raças leiteiras exploradas no Brasil são as que provêm de gado mestiço holandês-gir (cerca de 70% da produção).

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