À medida que aumentam as preocupações quanto aos vazamentos de radiação em Fukushima, é possível saber quais serão as sequelas desse desastre? | ||||||
A crise na usina nuclear Daiichi despertou preocupações sobre os efeitos para a saúde da exposição à radiação. O que é um nível “perigoso” de radiação? Como a radiação prejudica a saúde? Quais são as consequências de radiação aguda e em baixa dosagem? “Não estamos nem perto dos níveis que as pessoas deveriam se preocupar”, esclarece Susan M. Langhorst, física e encarregada de segurança de radiação na Washington University, em Saint Louis. De acordo com Abel Gonzalez, vice-presidente da Comissão Internacional de Proteção Radiológica que estudou o desastre de 1986 em Chernobyl, na melhor das hipóteses as informações atuais vindas do Japão sobre níves de vazamento de radiação são incompletas. Níveis de radiação: Em média, as pessoas são expostas a um nível de 2 a 3 millisieverts de radiação por ano, proveniente de uma combinação de radiação cósmica, emissões de materiais de construção e substâncias radiativas naturais no ambiente. A Comissão Regulatória Nuclear dos Estados Unidos recomenda que o público em geral limite sua exposição a menos de 1 millisievert adicional por ano. Para pacientes submetidos à radiação médica não há limite rígido de exposição – é responsabilidade de profissionais médicos pesar riscos e benefícios da radiação usada em diagnósticos e tratamentos. Por exemplo, uma única sessão de tomografia computadorizada pode expor o paciente a mais de 1 millisievert. A doença da radiação (ou síndrome aguda de radiação) manifesta-se depois de uma dose de 3 sieverts – 3 mil vezes a dose recomendada para o público em geral por ano. Os primeiros sintomas são: náuseas, vômitos e diarréia. Esses sintomas começam a aparecer num prazo de minutos ou dias, informam os Centros para Controle de Doenças dos Estados Unidos. Um período de enfermidade séria, que inclui perda de apetite, fadiga, febre, problemas gastrintestinais e, possivelmente, convulsões ou coma, pode vir em seguida e durar de horas a meses. Tipos de radiação: O que é preocupante na situação atual é a radiação por ionização, produzida por isótopos pesados em decaimento espontâneo, tais como iodo 131 e césio 137. Esse tipo de radiação tem energia suficiente para ionizar átomos (criando carga positiva ao suprimir elétrons), o que lhes dá o potencial químico para reagir de forma deletéria com átomos e moléculas de tecidos vivos. A radiação por ionização pode ter diferentes formas: nas radiações por raios gama e raios-X, átomos liberam partículas energéticas leves com potência suficiente para penetrar o corpo. As radiações por partículas alfa e beta têm energia mais baixa e podem ser bloqueadas por uma simples folha de papel. Se o material radiativo entra no corpo por ingestão ou inalação, no entanto, são precisamente as radiações alfa e beta com energia mais baixa que tornam-se mais perigosas. Isso porque uma grande porção de radiação por raios gama e X vai passar diretamente através do corpo sem interagir com o tecido, já radiações alfa e beta, incapazes de penetrar tecido, gastarão toda sua energia ao colidir com átomos do corpo e provavelmente causarão maior estrago. Na situação de Fukushima, os isótopos radiativos detectados, iodo 131 e césio 137, emitem radiação tanto gama quanto beta. Esses elementos são subprodutos da reação por fissão que gera eletricidade nas usinas nucleares. O governo japonês retirou 180 mil pessoas dentro de um raio de 20 km do complexo Daiichi. Porta-vozes do governo apelam para que as pessoas num raio de 30 km da usina fiquem dentro de casa, fechem todas as janelas, troquem de roupa e lavem a pele exposta após sair nas ruas. Tempo de exposição: Uma dose muito alta de radiação recebida em minutos pode ser mais nociva que a mesma dosagem acumulada durante algum tempo. De acordo com a Associação Nuclear Mundial, uma dose única de 1 sievert provavelmente causará doença da radiação temporária e contagem mais baixa de células brancas, mas não seria fatal. Uma dose de 5 sieverts provavelmente mataria metade das pessoas expostas durante 1 mês. No nível de 10 sieverts, a morte ocorre em algumas semanas. Lições de Chernobyl: De acordo com Gonzalez, alguns dos trabalhadores de Chernobyl receberam vários sieverts de radiação, e muitos estavam trabalhando “basicamente nus” devido ao calor, o que permitiu a absorção de pó contaminado através da pele. Já os trabalhadores japoneses estão muito bem equipados e protegidos contra doses diretas. A Tokyo Electric Power Co. (Tepco), proprietária da usina, retirou a maioria de seus funcionários, mas 50 permanecem no local para bombear água do mar a fim de resfriar os reatores e prevenir mais explosões. Provavelmente esses trabalhadores estão se expondo a altos níveis de radiação e correndo sérios riscos à saúde. “Como medida de precaução, limitaria a exposição dos trabalhadores a 0,1 sievert, e faria rodízio entre eles”, diz Gonzalez. Os trabalhadores teriam de usar detectores pessoais que calculariam tanto o nível quanto a dose total de radiação, e eles disparariam alarmes quando as doses máximas fossem atingidas. “Se a dosagem dos trabalhadores começar a se aproximar de 1 sievert, então a situação se torna séria”, completa. Milhares de crianças que ficaram doentes após o desastre de Chernobyl não foram atingidas por radiação direta, mas sim por beber leite contaminado com iodo 131. O isótopo, liberado pela explosão de Chernobyl, tinha contaminado a grama em que o gado pastava, e a substância radiativa ficou acumulada no leite das vacas. Pais, sem saber do perigo, serviram leite contaminado às crianças. “Certamente isso não acontecerá no Japão”, afirma Gonzalez. Quando se trata de exposição à radiação, profissionais que frequentemente trabalham com materiais radiativos, seja em hospitais ou em usinas nucleares, seguem o princípio de “nível razoavelmente atingível”. Os limites de exposição à radiação são estabelecidos bem abaixo dos níveis sabidamente capazes de induzir a doença da radiação. Scientific American Brasil |
sábado, 30 de abril de 2011
Como a radiação pode ameaçar a saúde?
quarta-feira, 27 de abril de 2011
Tendências da revolução na base técnico-científica
REVISTA FÓRUM
Uma cruzada anti-islâmica na Europa?
terça-feira, 26 de abril de 2011
Sob as bênçãos de São Francisco?
Apesar das críticas e dos atrasos, obras de transposição do Velho Chico avançam
ALBERTO MAWAKDIYE
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Iniciadas por destacamentos de engenharia do exército em 2007, as obras de transposição das águas do rio São Francisco para o chamado nordeste setentrional avançam devagar, mas vão inegavelmente se encaminhando para a conclusão. Com a perspectiva de construir mais de 700 quilômetros de canais, além de túneis, aquedutos, barragens e estações de bombeamento, os oito consórcios de empreiteiras contratados pelo governo já abriram frentes de obras em praticamente todos os trechos dos dois trajetos, os eixos leste e norte.
Esses trabalhos se encontram em diferentes estágios de execução e alguns até concluídos. As águas do eixo leste percorrerão uma distância de 287 quilômetros, a partir da barragem de Itaparica, no município de Floresta, no extremo sul de Pernambuco, e serão despejadas em rios, açudes e reservatórios desse estado e da Paraíba.
O outro canal – o chamado eixo norte, com 426 quilômetros – está com cerca de metade das obras executadas. Ele deverá levar a água desde a altura da cidade de Cabrobó, também no sul de Pernambuco, para o sistema hídrico do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba.
Com um custo estimado em R$ 4,5 bilhões, o Projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional, como foi batizado oficialmente o plano de transposição, prevê o abastecimento de cerca de 400 cidades do semiárido nordestino, além do uso da água em áreas de agricultura irrigada nos quatro estados alcançados pela obra.
Segundo cálculos do governo, a transposição poderá atender a 12 milhões de pessoas, um número equivalente a 30% da população da área mais atingida pelas secas no nordeste. O índice médio de disponibilidade de água naquela região é um dos mais baixos do planeta – 500 metros cúbicos por habitante/ano –, metade do mínimo estabelecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) para a vida sustentável.
O projeto prevê a captação, pelos dois canais de transposição, de 26 metros cúbicos por segundo da vazão média de 2.850 do rio São Francisco – menos de 1%, portanto. Segundo o Ministério da Integração Nacional, é um volume incapaz de prejudicar o ecossistema natural do grande rio, que nasce em Minas Gerais, no sudeste, e cruza a Bahia, antes de demarcar a divisa desse estado com Pernambuco e a de Sergipe e Alagoas, no chamado nordeste meridional, e desaguar no oceano Atlântico.
Isso não isenta o projeto de críticas. Os adversários da transposição – e eles são muitos, reunindo desde políticos e ambientalistas até membros da igreja católica e acadêmicos (ver entrevista de Melquíades Pinto Paiva, nesta edição) – reconhecem que o volume hídrico a ser transferido pelos canais de transposição não é, em si, muito grande, mas advertem que o São Francisco está tão enfraquecido pela excessiva utilização humana que qualquer nova interferência no regime das águas poderá pôr o rio a perder.
De fato, com 2,8 mil quilômetros de extensão, o São Francisco sofre com intervenções devidas a várias atividades econômicas, que incluem a extração de carvão, programas de irrigação e de pecuária, pesca, turismo e usos industriais. Além disso, recebe toneladas de esgotos que vêm da terra firme.
De qualquer forma, o governo está desenvolvendo uma série de programas de recuperação e preservação ambiental na área do São Francisco localizada no nordeste meridional, de modo a compensar as perdas e garantir a perenidade do rio. É uma medida sensata. O Velho Chico responde sozinho por 70% da oferta de água da região e também é responsável por quase toda a energia elétrica consumida no nordeste e em áreas adjacentes do sudeste e centro-oeste, gerada por cinco grandes usinas hidrelétricas implantadas em sua calha.
As obras da transposição modificaram a paisagem do semiárido. Elas lembram duas grandes valas a céu aberto cercadas de trabalhadores e implementos – 3,2 mil máquinas e equipamentos estão sendo usados pelas empreiteiras nos dois trajetos. São obras típicas de engenharia pesada. Os eixos do projeto consistem em canais com, em média, 25 metros de largura por 5 de profundidade, impermeabilizados com geomembrana protegida por uma camada de 5 centímetros de concreto.
Para chegar a seu destino, a água terá de vencer as barreiras impostas pelo relevo. Nas áreas de travessia de riachos e rios estão sendo construídos aquedutos e, para ultrapassar as regiões de maior altitude, túneis. Nove estações de bombeamento elevarão a água nos pontos mais problemáticos. Está prevista ainda a construção de 30 barragens ao longo dos canais, que funcionarão como reservatórios de compensação para permitir o escoamento mesmo durante as horas em que o sistema de bombeamento esteja desligado.
Com tudo isso pronto em cada um dos canais, só restará abrir a torneira e deixar a água rolar. E um projeto que nasceu ainda durante o reinado de dom João VI, no começo do século 19, e foi refeito e atualizado por diferentes governantes desde então, até ser finalmente tirado do papel no começo do século 21 pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sairá do universo da fantasia em que quase se refugiara para virar realidade. E o sertão – ou pelo menos parte dele – enfim vai virar mar.
Fronteiras desmoronantes
Como toda grande obra pesada de infraestrutura, a transposição do rio São Francisco vem sendo importante geradora de empregos no semiárido. Estima-se que de 7 mil a 9 mil trabalhadores, uma boa parte de origem local, estejam participando da abertura dos canais, da construção de túneis e da montagem de barragens.
O impacto na economia tem sido igualmente significativo. O comércio nas pequenas cidades da região jamais conheceu tanto movimento. Os restaurantes nunca prepararam tantos pratos, nem os mercadinhos venderam tamanha quantidade de produtos de alimentação e de limpeza, e as lojas de materiais de construção têm sempre agora um estoque extra de sacos de cimento.
Trata-se, porém, de uma economia de “fronteiras desmoronantes”, marcada pela mutabilidade geográfica: obviamente, o movimento acompanha o avanço da construção dos canais em direção ao norte. Quando as empreiteiras deixam determinado local, a economia volta ao que sempre foi.
A maior parte dos empregos é também do tipo temporário. No ano passado, era quase impossível para as empreiteiras recrutar um único peão de obra em municípios como Cabrobó, Floresta e Custódia, em Pernambuco, de onde, por assim dizer, a construção partiu: todos os trabalhadores disponíveis já estavam nos canteiros. Quando o grosso da empreitada terminou ali, quem não quis ou não pôde acompanhar a obra ficou desempregado.
O mercado de trabalho no semiárido é caracterizado pelo desemprego endêmico, amortecido pela informalidade, e pela reduzida qualificação profissional. Praticamente não existem empresários industriais: quase todos são pequenos comerciantes ou produtores rurais.
O Sebrae de Pernambuco, principalmente, vem tentando modificar esse quadro pela base. O principal programa da entidade para a região visa estimular, via treinamento e noções de gestão, a instalação de microempresas de tecnologia de informação e de logística avançada nos 33 municípios que gravitam em torno de Salgueiro, que é uma espécie de capital do semiárido. “Estamos também estimulando a criação de mais oficinas mecânicas”, explica Pedro Lira, analista-gestor de vários projetos na região. “É um segmento muito mal atendido, apesar da enorme demanda potencial: todos os dias passam milhares de caminhões por aqui.”
Segundo Lira, empresários de fora já se aperceberam do fato e começam a montar suas próprias oficinas em cidades maiores, como Salgueiro e Cabrobó. “É um espaço que os microempresários locais deveriam ocupar.”
Salgueiro, a abençoada
Encravada no coração do semiárido pernambucano, a cidade de Salgueiro, a 514 quilômetros do Recife, é provavelmente a única que irá se beneficiar economicamente desde o princípio até o final das obras da transposição. É de um pequeno complexo localizado na área central desse município de 60 mil habitantes que o Ministério da Integração Nacional coordena a execução dos trabalhos. A cidade está lotada de técnicos do governo e das empreiteiras e fervilha de agitação tanto durante o dia como à noite. Em 2010, a prefeitura quadruplicou os rendimentos com o Imposto sobre Serviços (ISS) e o comércio viu o movimento crescer 50%. A rede hoteleira trabalha no limite de seus 820 leitos.
A cidade é, de fato, como o prefeito Marcones Sá (PSB) gosta orgulhosamente de alardear, “a capital da transposição”. Ao contrário de outros prefeitos da região, porém, Sá não está nem um pouco preocupado com o término das obras, em 2012, e isso por um bom motivo: a transposição não é o único grande projeto a tangenciar a cidade. Graças à excepcional posição estratégica (a cidade é conhecida como a “encruzilhada do nordeste”), Salgueiro tornou-se também a principal base de apoio das obras da Ferrovia Transnordestina, que quando estiver concluída, em 2013, ligará os portos de Pecém, no Ceará, e Suape, em Pernambuco, ao sertão do Piauí. A cidade já foi escolhida como um dos futuros pontos nevrálgicos dessa ferrovia, já que está a meio caminho entre o interior do Piauí e os dois portos do Atlântico. “Não é à toa que a Odebrecht vai construir aqui a maior fábrica de dormentes do mundo”, comemora o prefeito. “Salgueiro também vai abrigar a principal plataforma multimodal do nordeste, com direito inclusive a um aeroporto de cargas e a um distrito industrial.”
Marcones Sá aposta que a cidade também deverá se tornar o maior entroncamento rodoferroviário da região. De fato, tudo indica que isso vai mesmo acontecer: a conclusão da Ponte do Ibó, nas imediações do município, já aproximou Salgueiro das principais capitais do nordeste, que agora ficam pelas vizinhas BR-116 e BR-232 a cerca de 600 quilômetros de distância, com exceção de São Luís, no Maranhão. Além disso, a ponte facilitou o acesso ao sudeste e ao sul do país. É provável que Salgueiro, no curto prazo, se torne uma cidade média tão importante no nordeste como Petrolina (PE), Juazeiro do Norte (CE) e Juazeiro e Feira de Santana (BA), das quais, aliás, está geograficamente equidistante.
Nada mau para uma cidade que faz meros dez anos era conhecida dos brasileiros unicamente por ser o núcleo do chamado Polígono da Maconha, que o governo federal e o de Pernambuco só a muito custo conseguiram erradicar – e, mesmo assim, não inteiramente.
Luta por acomodações
A transposição fez também explodir o movimento no normalmente pacato mercado imobiliário e de hotelaria das cidades que ficam em sua área de influência. No começo das obras, centradas basicamente na região de Salgueiro, Cabrobó e Custódia e que chegaram a reunir 9 mil trabalhadores em um trecho relativamente pequeno do semiárido, houve, acompanhando o inevitável inchaço populacional, uma verdadeira guerra por acomodações.
O cenário vem se repetindo conforme as obras avançam para o norte. São José de Piranhas e Monte Horebe, no sertão da Paraíba, e Mauriti e Barro, no Ceará, em cujas áreas rurais as empreiteiras escavam agora o túnel Cuncas I, do eixo norte, o maior para transporte de água da América Latina (com 15 quilômetros de extensão), vivem atualmente uma agitação jamais vista na história de seu ralo complexo hoteleiro. Não faltam situações inusitadas. Em Custódia – que tem dois hotéis razoáveis e uma boa porção de pousadas – em determinada ocasião um técnico do governo teve de dormir na casa do prefeito, porque não havia mais lugar onde pernoitar.
Os preços dos aluguéis dispararam em todo o sertão. Uma casinha que antes podia ser alugada por R$ 200 chega a valer agora R$ 700 mensais, se estiver perto do caminho das obras. Esses imóveis são procurados principalmente pelos técnicos vindos do centro-sul que optam por levar temporariamente a família para o nordeste.
Em Salgueiro, por ser “a capital da transposição” e por estar recebendo também as obras da Transnordestina e outras na área industrial e de infraestrutura, a certeza de que, pelo menos ali, o movimento será sustentado ao longo do tempo está induzindo os tradicionalmente cautelosos empresários locais a investir.
Socorro Borba, proprietária do maior e melhor hotel da cidade, o Salgueiro Plaza Hotel, construiu no ano passado, por exemplo, uma nova ala com 25 suítes para atender o aumento da procura. O estabelecimento passou a contar com 57 apartamentos. Agora, está recebendo melhorias na parte externa. “Mesmo com a ampliação, todos os quartos vivem ocupados”, explica Socorro. De acordo com ela, hoje, para conseguir hospedagem no Salgueiro Plaza, é preciso fazer a reserva com pelo menos uma semana de antecedência.
Alguns proprietários de bares e restaurantes da cidade, assim como donos de supermercados, também estão ampliando as instalações para dar conta da demanda. As lojas de materiais de construção estão igualmente em polvorosa: nunca se construíram tantas casas para alugar como hoje em Salgueiro.
Só com o dinheiro na mão
Quatro longos anos. Foi o tempo que José Francisco de Lima, pequeno sitiante de Custódia, de 63 anos, levou para receber os R$ 45 mil oferecidos pelo governo federal para que deixasse sua propriedade e abrisse espaço para a construção de um dos 30 reservatórios previstos no projeto de transposição, o de Cacimba Nova.
Como todos os que tiveram a casa ou o sítio desapropriado para a passagem da obra, Zé Francisco, como é conhecido, não queria sair de jeito nenhum sem o pagamento na mão. “A gente tinha plantação de milho, de capim, criava porcos. Sem a indenização, ia fazer o quê da vida?”, ele lembra.
Enfim, o dinheiro saiu no ano passado e Zé Francisco soube aproveitá-lo bem. Com a ajuda dos três filhos, construiu rapidamente uma casa nova não muito longe do lugar onde morava, e que ocupa uma área suficiente para a implantação de roçados e currais, maiores, aliás, que os que ele tinha antes. Zé Francisco já avisou aos “homens do governo” que basta eles instalarem energia elétrica na nova casa e a família – que já conta com um netinho – se muda imediatamente para lá. A área que cerca a antiga moradia já foi inteiramente desmatada e terraplenada. A casa de Zé Francisco ficou por último; hoje, é uma construção solitária no meio de um enorme terreno vazio e de aspecto lunar. Por pouco tempo. Daqui a uns dois anos, onde ela existia haverá um grande lago.
No total, perto de 700 famílias serão obrigadas a deixar suas casas por conta das obras em todo o trajeto dos canais da transposição, de acordo com o Ministério da Integração Nacional. A maioria delas será incluída no Programa de Reassentamento de Populações e instalada nas chamadas vilas produtivas rurais.
No último mês de dezembro, Lula, ainda presidente, entregou títulos de posse a 113 famílias reassentadas nas cidades pernambucanas de Salgueiro, Cabrobó e Verdejante. São casas de alvenaria de 99 metros quadrados, construídas pelo exército, com meio hectare cada uma para a prática da agricultura familiar. Cada casa tem sala, cozinha, dois quartos e alpendre. Na vila propriamente dita, há uma área comum de 3 a 5 hectares para cultivo. O local conta ainda com posto de saúde, escola, quadra de esportes, campo de futebol, praça e associação de moradores. Segundo o ministério, serão implantadas 18 vilas no âmbito de todo o projeto de transposição, a um custo de R$ 136 milhões.
Críticos da obra afirmam que na conta da desapropriação deveriam ser incluídos aqueles milhares de famílias que serão também impactados indiretamente pelo projeto, como acontece em várias comunidades indígenas e quilombolas. O traçado passa por dentro da Reserva Biológica de Serra Negra, por exemplo, onde moram mais de 5 mil índios pipipãs. A comunidade trucá é outra que ficou no caminho da obra.
O raio caiu no mesmo lugar
Vai ser difícil convencer a família de Batista Bezerra Matias, de Penaforte (CE), de que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar. Pois isso aconteceu na propriedade de cerca de 90 hectares que a família mantém nas duas margens da rodovia BR-116. Em 2004, Matias foi notificado de que parte de suas terras – onde planta principalmente tomates – teria de ser desapropriada para a passagem da transposição. Como se não bastasse, em 2008 recebeu a notificação de que o trecho oposto da fazenda, do outro lado da estrada, faria parte do trajeto da Ferrovia Transnordestina.
Com essas duas desapropriações, restarão à propriedade não mais do que duas nesgas de terra contíguas à rodovia. Ambas as obras já estão em andamento naquele trecho. “Querem pagar só R$ 90 mil para a gente sair daqui”, esbraveja Matias. “E isso porque brigamos: antes, nos ofereciam apenas R$ 44 mil. E todo mundo sabe que a fazenda vale mais do que R$ 150 mil – só de investimentos na roça gastamos uns R$ 30 mil.” O agricultor garante que a família só sai da propriedade se o governo melhorar o valor da indenização.
Vida de engenheiro
“O engenheiro vai levando a vida conforme a obra que faz.” É assim que Mauro Sérgio Verassani, da construtora OAS, justifica o fato de ter trazido a esposa Danielle para morar com ele numa arejada casa em Arcoverde, cidadezinha de Pernambuco localizada perto dos canteiros de obras da transposição. Verassani, engenheiro ambiental nascido em Ouro Preto (MG) e morador de Belo Horizonte, chegou em agosto de 2008 ao nordeste, onde deve permanecer até janeiro de 2012, ou seja, praticamente até a conclusão das obras. O casamento foi realizado em BH, quando já estava trabalhando na transposição. Antes de montar a casa em Arcoverde com a mulher, o engenheiro, como tantos outros técnicos vindos do centro-sul, ficava em repúblicas, em seu caso localizadas primeiro em Custódia e depois em Sertânia, também em Pernambuco.
“Não era ruim, mas eu me sentia um pouco solitário”, lembra-se Verassani. “As cidades daqui são muito pequenas, a gente não tem o que fazer à noite nem nos fins de semana. Quase todo mundo levava trabalho para casa para matar o tempo.” Ele conta que Danielle – advogada recém-formada que conseguiu arranjar um estágio na Defensoria Pública de Arcoverde – encarou a possibilidade de viver alguns anos no sertão nordestino com entusiasmo, mas no começo sofreu tanto quanto ele para se adaptar. “A comida daqui é muito forte, gordurosa, à base de coentro, é preciso se acostumar”, lembra. “E se não tomar cuidado, a gente engorda mesmo.” O calor, que chega fácil aos 40 graus, e o clima muito seco foram outras dificuldades.
Hoje Verassani classifica sua vida como “boa e tranquila”. Seu trabalho como engenheiro ambiental é intenso – o projeto da transposição prevê a implantação no nordeste setentrional de 36 programas básicos ambientais relativos a fauna, flora e monitoramento de água, além da criação de 12 áreas de preservação –, mas com um carro e Danielle do lado, opções de lazer não faltam. “Arcoverde fica a 300 quilômetros do Recife e não é nada difícil ir até as praias de João Pessoa, Natal ou Maceió nos fins de semana”, afirma. “E há ainda muitas cidadezinhas históricas no sertão que vale realmente a pena conhecer.”
O aguadeiro
Batizado como José Lúcio Cordeiro da Silva, Zé Luz é uma figura popular e estimada em Custódia. Ele exerce uma das profissões mais antigas do mundo, a de aguadeiro, que devia estar extinta depois da vulgarização dos serviços públicos de abastecimento, mas é ainda de bastante utilidade nas regiões onde a água é racionada, em alguns períodos, até para beber, como o semiárido nordestino.
O nome de sua profissão – de remotas origens portuguesas – perdeu-se no tempo. Para a população da cidade, ele é só Zé Luz, o carroceiro de água. Seu trabalho consiste em vender, de porta em porta, a água que vai buscar nos reservatórios, açudes e poços da região e transporta em um tambor de plástico de 300 litros em cima de uma carroça. Ele negocia a água por R$ 10 o barril em média ou por uma quantia combinada na hora se a venda é “picada” (a unidade de medida é a “lata”).
Hoje, com o grosso das obras da transposição já distante de Custódia, Zé Luz, como os outros vários aguadeiros da cidade, queixa-se da vida. “A venda diminuiu muito”, lamenta. De fato, durante a fase de pico das obras, com o movimento mais intenso nos restaurantes, botequins, hotéis e pousadas, a demanda de água aumentou em Custódia (o que não foi problema nos canteiros de obras, bem providos pelas empreiteiras). Agora, voltou praticamente ao normal.
Os citadinos e os pequenos fazendeiros usam a água dos açudes e poços, em geral muito barrosa, principalmente para lavar roupas e pratos e tomar banho. Para beber e cozinhar, eles normalmente utilizam a água dos reservatórios da prefeitura, que a torna potável depois que máquinas apropriadas tiram o excesso de sal. Nos períodos de maior estiagem, porém, quando nem os serviços de carros-pipa conseguem dar conta do recado, a água de Zé Luz e de seus colegas aguadeiros supre as lacunas do fornecimento, inclusive para beber.
Essa é uma das grandes tragédias sociais do semiárido, não só pela má qualidade da água dos açudes em si. Inúmeros estudos já feitos indicam que os próprios tambores de aço ou de plástico usados pelos aguadeiros – e até por muitos agricultores – são normalmente adquiridos em estabelecimentos comerciais que revendem recipientes já utilizados para outros fins.
O uso de tambores (ou “bombonas”) para o transporte da água traz óbvios riscos para a saúde da população, devido aos possíveis resíduos existentes nesses recipientes – inclusive químicos. Sem falar do sabor, já comumente intragável. Acabar com a profissão de Zé Luz – que mora com uma família numerosa num pequeno sítio nas redondezas de Custódia – é um dos objetivos laterais do projeto de transposição do rio São Francisco para o semiárido.
Essa, porém, não será uma tarefa simples. Mesmo em estados atendidos pelo Velho Chico, como a Bahia, é possível ainda encontrar aguadeiros, firmes e fortes, do mesmo modo que no sertão do Ceará e de Pernambuco. Ali nos estados mais ao sul há água, mas a distribuição é imperfeita: o serviço de abastecimento para as populações mais pobres e afastadas está longe de ser universal no país – problema que os encarregados do projeto da transposição terão de resolver, para que essa custosa e gigantesca obra tenha realmente valido a pena.
Revista Problemas Brasileiros
Cresce o número de islâmicos no Brasil
Curiosidade gerada pelos atentados de 11 de setembro de 2001 propiciou conversões
LÚCIA NASCIMENTO
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A primeira vez que visitei uma mesquita foi em um sábado à noite, no início de novembro do ano passado, quando comecei minhas pesquisas para esta reportagem. Assim que cheguei à Mesquita Brasil, a mais antiga do país, em um bairro da região central de São Paulo, fui para uma salinha em que há saias e véus brancos guardados – de todos os tamanhos e para todos os gostos. Eles ficam à disposição de qualquer mulher que queira participar das rezas e das palestras ali realizadas. Coloquei um véu e uma saia comprida, até os pés. Tirei os sapatos, como é costume não apenas nas mesquitas, mas nas casas de muçulmanos, e entrei. Alguns dos homens que participariam da cerimônia naquele dia já estavam reunidos, sentados no chão. Nenhuma mulher havia chegado e me disseram que eu poderia sentar no lado direito do salão, onde ficava uma espécie de sala de recepção.
O chão era todo forrado por carpete e pilares brancos bem altos sustentavam as cúpulas decoradas com desenhos árabes. Por fora, o prédio não chama muito a atenção, apertado entre várias construções. Por dentro, lembra as mesquitas dos países muçulmanos, com várias referências ao Alcorão, o livro sagrado do islamismo. Após alguns minutos outras mulheres chegaram, com vestimentas diversas: algumas com um leve véu de renda nos cabelos, outras com véu branco e saia iguais aos que eu havia colocado, e outras ainda com véus bem maiores, que cobriam todo o corpo. Dentro das mesquitas, eles são parte obrigatória do vestuário feminino.
O xeique deu início ao sermão em árabe, proferindo os versos do Alcorão. Para os leigos, como eu, a impressão era de que ele cantava. Ao todo, não chegávamos a 20 pessoas, as mulheres separadas dos homens. Pelo Brasil afora, porém, muitas pessoas rezam do mesmo modo, todas as semanas.
De maneira geral, as comunidades muçulmanas estão localizadas nos estados de São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e no Distrito Federal. E, com relação aos números, há discrepâncias. Pelo censo de 2000, haveria pouco mais de 27 mil adeptos da religião. Já segundo as entidades islâmicas, o número chegaria a mais de 1 milhão. “Só em São Paulo, a cidade de maior concentração de muçulmanos, existem cerca de 200 mil”, afirma o xeique Khaled Taky Eldin, diretor de assuntos islâmicos da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil (Fambras). E grande parte deles não é estrangeira, como se poderia supor. Eles são descendentes de árabes, sírios, libaneses, africanos... nascidos no Brasil.
História
Tudo começou com a chegada de alguns escravos africanos, nos séculos 18 e 19. Por influência do comércio e de migrações, parte dos negros vendida como mão de obra para as Américas não tinha religião tipicamente africana. Sua crença era o islamismo. “Muitos eram trazidos de áreas islamizadas da África e, no Brasil, tentavam dar continuidade a suas práticas religiosas. Há provas inclusive de um ativo comércio de Alcorões e gramáticas de língua árabe naquela época”, afirma a antropóloga Gisele Fonseca Chagas, pesquisadora do Núcleo de Estudos do Oriente Médio da Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro.
Por causa da condição de escravos, porém, muitas vezes sua religião não era respeitada. Tanto que, na madrugada de 25 de janeiro de 1835, um domingo, teve início em Salvador, na Bahia, uma insurreição conhecida como Revolta dos Malês. O nome do movimento se deve à denominação dada aos negros muçulmanos que a organizaram. A palavra “malê” vem de “imalê”, que na língua ioruba, usada por eles, significa muçulmano. Sua principal bandeira, ao contrário do que se pode supor, não era simplesmente libertar-se dos senhores de engenho, mas decretar o fim do catolicismo, religião que lhes era imposta. “Em 1835, a grande maioria dos escravos da Bahia nascidos na África era realmente de língua ioruba, cerca de 30%. [...] muitos deles professavam a religião muçulmana”, confirma o historiador João José Reis, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em seu artigo “A Revolta dos Malês em 1835”.
A segunda leva de muçulmanos, mais numerosa, chegou ao país alguns anos depois e veio de outras regiões do globo, deixando descendentes que até hoje vivem no Brasil. “Essa segunda parte descende de imigrantes árabes vindos particularmente do Líbano e da Síria no primeiro terço do século 20”, escreve o historiador Peter Robert Demant, da Universidade de São Paulo (USP), em seu livro O Mundo Muçulmano (Editora Contexto). De fato, em minha visita à Mesquita Brasil, pude perceber que grande parte dos muçulmanos era descendente de árabes, principalmente vindos do Líbano. “O maior fluxo de imigração de árabes muçulmanos aconteceu no período após a 2ª Guerra Mundial, principalmente depois da criação do Estado de Israel, em 1948, e das consequentes guerras envolvendo aquele país e as diversas nações árabes, além de conflitos internos, como a guerra civil no Líbano, entre 1975 e 1990. Dados não oficiais indicam que, dos 6 milhões de árabes que emigraram para o Brasil, 1 milhão são muçulmanos”, afirma Gisele.
Como aconteceu em outros países latino-americanos, porém, os imigrantes nem sempre mantiveram comunidades fortes – e é possível que muitos descendentes de árabes não pratiquem mais a religião islâmica no Brasil. “Mesquitas até existem, mas o islã não floresceu. As tradições brasileiras de tolerância intercomunitária e de mestiçagem os empurraram para uma irresistível tendência de assimilação. Em lugar da xenofobia que dificulta a posição do islã na Europa e nos Estados Unidos, aqui a sobrevivência de uma cultura islâmica específica tem de lidar com a presença de uma cultura geral receptiva demais. Só nos últimos anos assiste-se a um ‘despertar’ islâmico, com correspondente expansão das congregações”, explica Peter Robert.
Efeito reverso
Para explicar essa expansão, há dois motivos principais. O primeiro seria a influência dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, que teriam despertado a curiosidade sobre a religião. A presença do islamismo na televisão e nos jornais, após esse episódio, teria provocado um efeito reverso. “O mundo todo quis saber o que é o islamismo depois dos ataques”, ressalta o xeique Armando Hussein Saleh, voluntário da Mesquita Brasil.
Apesar de as notícias referentes ao 11 de setembro ressaltarem o fundamentalismo que assola uma pequena parcela dos seguidores do islã, o resultado não foi negativo: a identidade muçulmana dos descendentes de árabes – até mesmo daqueles que haviam se distanciado da religião – fortaleceu-se porque eles se sentiram perseguidos e difamados com os comentários propalados na mídia. Depois, veio ainda a curiosidade: tanta divulgação atraiu brasileiros que antes não tinham ligações com o mundo muçulmano, mas que, como ocorreu com os descendentes de árabes, sentiam-se marginalizados de alguma maneira.
Pode-se dizer, também, que a visibilidade do islã e dos muçulmanos na sociedade brasileira cresceu bastante também a partir de 2001 devido à telenovela “O Clone”, que agora está sendo reprisada. “Essa trama, apesar de incorreções teológicas e da criação de alguns estereótipos em relação aos muçulmanos e a seu cotidiano, contribuiu para criar uma imagem positiva do islã no Brasil”, relata Gisele. “Inclusive, expressões corriqueiras do mundo árabe muçulmano, comoinshallah (que significa ‘se Deus quiser’), tornaram-se parte dos bordões populares. Em geral, segundo o antropólogo Paulo Pinto, em seu livro Islã: Religião e Civilização, os discursos estigmatizantes sobre o islã criados no pós-11 de setembro não tiveram o monopólio da representação do islã na esfera pública brasileira, uma vez que tinham de enfrentar a concorrência daqueles de cunho positivo veiculados pela novela.”
Com esses dois divulgadores, a religião se alastrou. Conquistou novos adeptos entre árabes de todas as cepas, católicos e até mesmo entre aqueles que não tinham religião. Na periferia das grandes cidades, como São Paulo, ganhou contornos de “volta às raízes”, arrebanhando negros que viram, no islamismo, uma maneira de honrar seus antepassados africanos.
Diferenças
A vida dos seguidores do islamismo no Brasil, entretanto, não é igual à dos muçulmanos do Oriente Médio – região do mundo em que estão mais concentrados. “Certa vez, conversando com um libanês, ele me disse que era diferente ser muçulmano no Brasil e no Oriente Médio, até porque o islamismo não é apenas uma religião. A vida social e mesmo a política estão atreladas”, explica Henry Albert Yukio Nakashima, historiador e mestrando da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Na opinião do especialista, as interações do dia a dia são o principal motivo para isso. “A cultura local influencia o modo como as pessoas praticam o islamismo”, completa. Uma das diferenças é o consumo de carne de porco. Proibido pela religião, no Brasil ele acaba sendo mais tolerado por alguns adeptos. “Conheço muçulmanos brasileiros que consomem essa carne, mas seguem todas as outras regras do islã”, diz Henry.
As diferenças, no entanto, não são empecilho para a vida dos muçulmanos no país, apesar de surgirem alguns embaraços. “É claro que os imigrantes árabes muçulmanos podem ter problemas relacionados às práticas culturais locais e ao idioma, que eventualmente tornam mais complicada a socialização. Mas, no caso dos muçulmanos brasileiros, as dificuldades encontradas são diferentes entre aqueles nascidos muçulmanos e os que se converteram quando já eram adultos. Os dois grupos dominam a cultura local, mas devem adequá-la à sua crença”, explica Gisele. Ela lembra também que os convertidos, em tese, precisariam mudar suas práticas alimentares, deixando de ingerir produtos que tenham origem suína. Ou, ainda, deveriam evitar ambientes com bebidas alcoólicas, que são proibidas no islã. “As dificuldades se dão mais em termos práticos, não levando a uma exclusão social dos muçulmanos, como se observa em países europeus.” Para as mulheres, talvez, a tarefa seja um pouco mais árdua. “Muçulmanas que usam o véu islâmico podem, por exemplo, encontrar algumas resistências com relação à aceitação pela sociedade local”, afirma a pesquisadora.
Por outro lado, eles precisam enfrentar o preconceito, que, apesar de velado em grande parte dos casos, existe. Uma pesquisa feita pelo instituto Datafolha em 2007 e divulgada pelo jornal “Folha de S. Paulo” mostrou que, para 49% dos entrevistados, a frase “os muçulmanos defendem o terrorismo” seria verdadeira. “De fato, há queixas entre os seguidores do islã sobre o tratamento que a mídia em geral dá à religião e a eles, associando-os, muitas vezes, ao terrorismo”, explica Gisele.
Véu
No caso das muçulmanas, como se pode supor, o preconceito – ou a estranheza – é mais evidente. O uso do véu, em grande parte, é o responsável por tal estranhamento. “Há indícios de que, no Brasil, a adesão ao uso do véu se relacione mais a uma construção identitária do que a um apelo político, como ocorre no Egito e na França”, afirma Isabelle Christine Somma de Castro, doutoranda em história social na USP, em seu artigo “O Véu, a Identidade e o Discurso”, publicado no site do Instituto da Cultura Árabe (ICArabe). O véu seria, para as muçulmanas brasileiras, uma maneira de identificar suas crenças – e só.
Segundo a pesquisadora, “a época e o local de origem do costume de cobrir os cabelos e o corpo são incertos. Cobrir o rosto com um véu era comum na Baixa Idade Média entre as bizantinas orientais, mas também era uma prática corrente na península Arábica pré-islâmica. Sabe-se com certeza, contudo, que esse hábito se popularizou entre os muçulmanos muitas décadas depois da morte do profeta Muhammad [Maomé]. A própria regulamentação da vestimenta entre os muçulmanos é controversa. O Alcorão não é preciso sobre o assunto. Nele, não há nenhuma indicação em relação à prática feminina de cobrir a cabeça, apenas a recomendação de que os fiéis se vistam com modéstia”.
A dissertação de mestrado de Fawzia Oliveira Barros da Cunha, na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), confirma a tese de que as muçulmanas aderem ao véu como afirmação de sua identidade religiosa. “Com base nos depoimentos de mulheres de Juiz de Fora, cidade do interior de Minas Gerais, noto que há uma busca explícita por uma identidade por essas muçulmanas ao usarem o véu, mas não podemos fazer afirmações definitivas, apenas apontar pistas sobre que tipos de identidade estão construindo”, escreve a pesquisadora. “Também há o fato de algumas usarem o véu mesmo com roupas curtas, coloridas e exóticas, viajarem sozinhas, trabalharem fora do lar. Esses fatos parecem demonstrar que essas mulheres acolhem, de certa forma, talvez não tão rígida, a tradição, as codificações transnacionais do islã, mas ao mesmo tempo conectam-se e se abrem ao mundo no qual se inserem, recebendo suas influências.”
Essa, talvez, seja a melhor definição do mundo muçulmano brasileiro: uma troca cultural incessante. “A princípio, as leis e recomendações citadas devem ser o alicerce de todo fiel muçulmano. O contato com outras culturas, porém, influenciou as tradições. E, por mais distintas que possam parecer, diferentes culturas, quando em contato, trocam elementos que, a longo prazo, se tornarão novas práticas e tradições. Os fundamentos permanecem como conexão com o divino e a fé, mas sua prática, inevitavelmente, fica sujeita às especificidades do local de contato e das condições do momento”, conclui Henry Nakashima.
Revelação divina
Seguindo a tradição das grandes religiões monoteístas, o islamismo alicerça suas crenças na revelação de Deus. A palavra “islã”, por exemplo, significa submissão à vontade de Deus (Alá). Sua origem remonta ao século VII d.C., na atual Arábia Saudita, onde Maomé recebeu a revelação de Deus por intermédio do anjo Gabriel. Assim como os judeus e os cristãos, os muçulmanos creem em anjos e profetas. “Não seria absurdo dizer que o islamismo faz parte de uma mesma cronologia de revelações, iniciando-se com Abraão e os profetas hebreus, passando por Jesus Cristo, para terminar em Maomé”, afirma o historiador Henry Nakashima.
A religião tem cinco pilares fundamentais, preceitos que todo muçulmano deve seguir. Primeiro: não há Deus senão Alá, e Maomé é o seu profeta. Segundo: o muçulmano deve orar no mínimo cinco vezes ao dia, voltado em direção a Meca. Terceiro: desde que tenha reais condições de fazê-lo, todo muçulmano deve pagar o tributo, cujo valor é de 2,5% de sua renda anual, em prol dos mais pobres. Quarto: é preciso fazer jejum durante o mês do ramadã. Esse jejum inclui a proibição de comer, beber, fumar e manter relações sexuais entre o nascer e o pôr do sol. Quinto: desde que tenha condições, o fiel deve fazer uma peregrinação a Meca pelo menos uma vez na vida.
Profissão de fé
O ritual para se tornar muçulmano é bem simples e igual para homens e mulheres. A conversão se dá com a pronúncia, em árabe, da shahada, que seria a profissão de fé. Deve-se dizer que não há deus senão Deus, e que Maomé é o seu profeta. Esse pequeno ritual marca a entrada do convertido na comunidade mundial dos fiéis islâmicos. “Geralmente, em famílias muçulmanas, a shahada é sussurrada ao ouvido dos recém-nascidos. No caso de conversão, ela deve ser pronunciada três vezes na presença de outro muçulmano adulto”, conta Gisele Chagas, da Universidade Federal Fluminense. Não é necessário estar diante de autoridades religiosas para que se dê a conversão e, no Brasil, esses rituais podem ser públicos ou privados, coletivos ou individuais.
Revista Problemas Brasileiros
Será que o Brasil entra nos trilhos?
Desde os tempos do Império, país tenta investir no transporte por trem
CEZAR MARTINS
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Ciente das vantagens que o transporte de cargas e passageiros por ferrovia trouxe a países europeus e aos Estados Unidos, o governo brasileiro editou uma lei que autorizava investidores a explorar a construção e operação de estradas de ferro para interligar as regiões da Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. A perspectiva de baixos lucros e altos custos, porém, despertou pouquíssimo interesse e nada foi feito por quase 30 anos.
Contada assim, a história parece referir-se ao passado recente do Brasil, que hoje tem aproximadamente 29 mil quilômetros de estradas férreas em utilização e precisa chegar a 52 mil até 2020 para desobstruir parte dos gargalos que comprometem a competitividade da indústria nacional. Entretanto, ela aconteceu em 1835, no tempo do Império, quando as mercadorias eram transportadas no lombo de mulas, e foi a primeira tentativa frustrada de promover a integração do território nacional a partir do modal ferroviário. Nesta década, 75 anos depois, o setor deve receber uma injeção de R$ 100 bilhões, montante capaz de fazer empresários e analistas acreditarem que, desta vez, a produção nacional finalmente vai andar nos trilhos. O valor é quatro vezes maior do que o aplicado nos últimos dez anos e contabiliza recursos previstos para ser liberados pelos governos federal e estaduais para ampliação da malha férrea urbana e interestadual, de carga e de passageiros, mais aportes que deverão ser feitos pelas concessionárias vencedoras de licitações. Outra parte virá, ainda, de linhas de financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Existe a expectativa também de que, pela primeira vez, o transporte de pessoas receba a maior parte dessa vultosa quantia – aproximadamente R$ 75 bilhões –, o que seria considerado um dos principais avanços na política para o setor. Só a ampliação do sistema metroviário de São Paulo, incluindo a construção de novas linhas e melhoramento da rede de trens metropolitanos, deve consumir algo próximo a R$ 6 bilhões até 2014.
Além da capital paulista, o Rio de Janeiro promete investir quase R$ 10 bilhões para melhorar seu sistema de trens e metrô até 2016, um dos compromissos assumidos pelo país para sediar os Jogos Olímpicos. Brasília, Recife, Salvador, Fortaleza, João Pessoa, Natal, Alagoas e Porto Alegre também têm projetos para aumentar a oferta de transporte ferroviário. “Existe um problema grave de mobilidade em quase todas as cidades, que expõe os passageiros aos mesmos gargalos do transporte de cargas. Praticamente todos os sistemas ferroviários municipais e intermunicipais do Brasil têm planos de expansão”, comenta Vicente Abate, presidente da Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer).
Velocidade máxima
Dentro desse plano de investimentos, um dos projetos mais caros e polêmicos, capitaneado pelo governo federal, diz respeito a uma linha de alta velocidade entre Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro, que passa por regiões de alta densidade demográfica como o vale do Paraíba e pode custar R$ 33 bilhões. A ideia acendeu uma discussão inflamada entre especialistas. Os opositores contestam os estudos preliminares, afirmando que a demanda prevista de 32 milhões de passageiros por ano foi superestimada e que os gastos com a obra, grande parte financiados com verbas públicas, serão bem maiores do que os divulgados inicialmente. Além disso, eles alegam que o trajeto não está bem planejado.
Os defensores, por sua vez, dizem que a distância entre as duas principais cidades do país, 430 quilômetros, é ideal para a instalação de trens que podem atingir até 300 quilômetros por hora, amplamente difundidos na Europa e no Japão e cuja tecnologia precisa ser incorporada o mais rapidamente possível pela indústria nacional. Eles afirmam também que a demanda de passageiros crescerá com o tempo e o investimento inicial será recuperado, pois a expectativa de uma receita anual de R$ 2 bilhões seria conservadora.
A polêmica foi tão grande que o governo federal teve de adiar, de 16 de dezembro de 2010 para 29 de abril de 2011, o leilão para ceder à iniciativa privada a construção e operação do trem-bala brasileiro. De acordo com o diretor geral da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), Bernardo Figueiredo, a decisão foi tomada para atender ao pedido de grupos de investidores, que necessitavam de mais tempo para finalizar estudos de viabilidade. Até a primeira data marcada, apenas um consórcio, coreano, havia manifestado o desejo de participar da licitação. Com o adiamento, acredita Figueiredo, serão mais quatro. “O governo busca a melhor proposta e não poderíamos ficar alheios ao interesse de alguns grupos”, afirma o diretor, sem citar quais são as outras empresas dispostas a entrar na concorrência. Para complicar, a ANTT terá de encontrar uma maneira de driblar a recomendação do Ministério Público Federal do Distrito Federal de que suspenda o leilão porque as avaliações de impacto social e ambiental da obra não estariam satisfatórias.
A União, no entanto, confia tanto no sucesso do empreendimento que está disposta a usar dinheiro público para garantir o início das obras. Em medida provisória editada nos últimos meses de mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o BNDES foi autorizado a emprestar R$ 20 bilhões aos vencedores da licitação, com juros subsidiados, prazo de pagamento de 30 anos e seis meses de carência após o início da operação, previsto para 2016. O texto inclui ainda a diminuição dos juros caso a receita inicial gerada seja menor que a esperada e o ressarcimento do banco pelo Tesouro Nacional se o consórcio não pagar o empréstimo. O governo pretende que um dos maiores clientes do futuro trem seja a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, que tem 80% do tráfego de seus serviços concentrado entre Rio de Janeiro e São Paulo e, por isso, poderia ter um vagão exclusivo para o transporte das mercadorias despachadas diariamente.
Ascensão e queda
O Brasil já teve uma quantidade razoável de passageiros e cargas transportada por trens, mas a falta de planejamento de longo prazo e as crises econômicas fizeram o movimento decrescer ao longo dos anos e impediram uma integração eficiente entre regiões do interior e os portos. No final da década de 1950, quando as fronteiras agrícolas eram menores e a produção industrial era um embrião em comparação à atual, o país contava com cerca de 40 mil quilômetros de trilhos, quase 11 mil a mais que atualmente. A primeira ferrovia brasileira foi inaugurada em 1854, construída por Irineu Evangelista de Souza, o barão de Mauá, para ligar o Porto de Estrela, na baía da Guanabara, até Raiz da Serra, próximo à cidade de Petrópolis (RJ), onde a família imperial costumava veranear. O transporte de passageiros, na época, era feito por uma locomotiva a vapor chamada de Baronesa, que funcionou por mais de 30 anos.
Exemplo do planejamento falho é o fato de as ferrovias terem crescido para atender, na maioria das vezes, ciclos econômicos curtos e específicos, como o da borracha, no início do século 20. Concluída em 1912, a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré foi construída como forma de compensar a Bolívia pela cessão do território do atual estado do Acre e sua função era levar o látex extraído das seringueiras amazônicas na região norte daquele país até a parte navegável do rio Madeira, pelo qual alcançaria o Amazonas e por fim os terminais portuários. O trecho ferroviário de 366 quilômetros de extensão, entre as cidades rondonianas de Guajará-Mirim e Porto Velho, parecia ser a melhor solução para vencer as cachoeiras e corredeiras intransponíveis no rio Madeira, mas a construção da via, iniciada em 1907, mostrou-se uma tarefa difícil por conta do terreno e do ambiente hostil.
Estima-se que 6 mil operários, entre brasileiros, bolivianos, colombianos, ingleses, italianos, americanos e de outras nacionalidades, morreram durante a obra, vítimas de doenças como malária e febre amarela, de picadas de cobras e ataques de tribos indígenas, fato que valeu à estrada o apelido de Ferrovia do Diabo. Menos de 20 anos após o término da obra, os seringais da Malásia já conseguiam produzir látex com custo muito mais baixo e o comércio com a América do Sul entrou em declínio. Sem outra função a não ser o transporte desse produto, a ferrovia foi abandonada pela Madeira-Mamoré Railway Company e voltou à administração do governo brasileiro, que a manteve em funcionamento por mais 40 anos, mesmo com prejuízos e críticas aos serviços prestados. Sua incrível história, no entanto, fez com que passasse a integrar o Patrimônio Histórico Nacional e já serviu de inspiração a um livro e uma minissérie. Um pequeno trecho próximo à capital de Rondônia está sendo restaurado para a realização de passeios turísticos.
Nas regiões sul e sudeste, o desenvolvimento ferroviário seguiu a mesma lógica, o que proporcionou o surgimento de diversas pequenas estradas de ferro destinadas a escoar a produção agrícola, principalmente café, até os portos de Santos (SP) e Paranaguá (PR), no Paraná. Até 1930, o estado de São Paulo contava com 18 ferrovias, metade delas com menos de 100 quilômetros de extensão, destinadas a fazer a ligação com os grandes ramais que levavam até o litoral. Com o fim desse ciclo, os trilhos e equipamentos foram abandonados e boa parte deles permanece sem uso. O desinteresse pelas ferrovias atingiu o auge há 60 anos, quando o governo brasileiro, diante da necessidade urgente de interligar o país para conseguir exportar alimentos e estimular o desenvolvimento da incipiente indústria, passou a investir em rodovias, cuja construção é mais rápida e barata. “O modelo rodoviário mostrou-se adequado para as necessidades daquele momento e funcionou, com erros e acertos. Mas agora é preciso expandir a oferta de transporte para podermos ter competitividade”, avalia Abate, da Abifer.
Nessa mesma época, em 1957, quase todas as estradas de ferro passaram a ser administradas pela Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA), estatal criada naquele ano. Ficaram excluídos apenas 5 mil quilômetros aproximadamente das linhas de São Paulo, mas em 1971 eles foram englobados na Ferrovia Paulista S.A. (Fepasa), instituída pelo governo estadual. Nos anos seguintes, as crises econômicas e a falta de investimentos levaram as duas empresas à falência. Com dívidas exorbitantes, a RFFSA foi incluída no Programa Nacional de Desestatização, lançado em 1990, e seus ativos foram leiloados em 1996. A Fepasa também foi vendida, depois de ser incorporada em 1998 à estatal federal, finalmente extinta um ano depois. A operação das ferrovias ficou, então, a cargo de empresas privadas que adquiriram a concessão dos serviços de transporte e se comprometeram a investir na recuperação das linhas.
De lá para cá, avanços importantes ocorreram na modernização das ferrovias e no volume transportado. Segundo dados da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), cujas empresas afiliadas detêm a concessão de 28,3 mil quilômetros de vias férreas, desde a privatização foram investidos R$ 23 bilhões no setor e o total de cargas saltou de 256 milhões de toneladas, em 1999, para 460 milhões em 2010. A malha, porém, não foi ampliada, assim como o tipo de mercadorias transportadas. Aproximadamente 80% delas são minério de ferro e carvão mineral, insumos produzidos por grandes conglomerados como Vale, Usiminas e CSN, que controlam as operadoras logísticas. “O primeiro ponto a destacar, na questão do transporte ferroviário, é que, em 14 anos, a iniciativa privada recuperou o que existia e alavancou o investimento. Agora, é preciso aumentar a malha e ajustar o marco regulatório, para que os investidores possam injetar dinheiro, corrigir deficiências e agregar novos produtos ao transporte. Há grandes expectativas para esta década, quando finalmente parece que teremos um planejamento estratégico para a área de transportes”, afirma Rodrigo Vilaça, diretor executivo da ANTF.
Crescimento planejado
Uma das razões para otimismo é o Plano Nacional de Logística e Transportes (PNLT), desenvolvido pelo Ministério dos Transportes e elogiado por reunir estratégias de melhoria e crescimento integrado para todos os modais – aéreo, rodoviário, marítimo e ferroviário. De acordo com suas diretrizes, até 2025 as ferrovias deverão ter participação de 35% na matriz nacional de transportes – 10% a mais do que representam atualmente e 5% acima do que é estimado para as rodovias no mesmo ano. O PNLT também serve como base para a aplicação dos investimentos públicos previstos no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal, que entra em sua segunda fase no mandato da presidente Dilma Rousseff. Para que esses números sejam alcançados de verdade, no entanto, apenas os R$ 43 bilhões prometidos pelo poder público até 2014 para a expansão ferroviária não serão suficientes. De acordo com os especialistas, é preciso resolver outras questões delicadas que não estão ligadas apenas à verba disponível.
As regras para concessão à administração privada das ferrovias que já estão prontas e das que serão construídas são um dos pontos mais importantes nessa discussão. O novo marco regulatório deveria ter sido aprovado no ano passado, mas ainda depende da sanção da presidência da República por conta de tópicos polêmicos e questionamentos das empresas que já operam o sistema. O maior problema está no destino que será dado a boa parte da malha licitada, mas que está subutilizada – segundo a ANTT, menos de metade dos trilhos existentes no país tem a passagem de ao menos um trem por dia.
A proposta do governo é que os trechos com baixa movimentação de carga retornem para a União, sob a administração da estatal Valec – Engenharia, Construções e Ferrovias, e possam ser utilizados por outras empresas que possuam composições próprias mediante o pagamento de taxas menores que as cobradas atualmente pelas companhias que detêm as concessões. Na visão governamental, o acordo existente de concessão não teve sucesso para incentivar o crescimento da malha ferroviária e, por isso, precisa ser alterado.
De acordo com as empresas, a retomada de trechos de ferrovias sem algum tipo de compensação desrespeita os contratos firmados na metade da década de 1990. “Ferrovias não são um negócio para amadores, são projetos que alcançam resultados em médio e longo prazo. Os benefícios serão vistos daqui a seis ou oito anos. Além disso, é preciso que os aeroportos, portos e rodovias estejam mais bem equipados e, de alguma maneira, interligados às ferrovias”, afirma Vilaça.
Outra necessidade urgente que deve ser objeto de projetos ferroviários é o atendimento de importantes setores da economia, ligando polos industriais e áreas agrícolas de grande produção aos centros consumidores das regiões sul e sudeste. Levantamento realizado entre profissionais de diferentes segmentos produtivos pelo Instituto de Logística e Supply Chain, que conta com professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, verificou que a baixa disponibilidade de rotas ferroviárias no Brasil praticamente inviabiliza a distribuição de produtos por esse tipo de transporte.
Estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com empresários de 20 setores diferentes vai na mesma direção e mostra que 65% dos entrevistados passariam a utilizar os trens se houvesse essa opção. Como base de comparação, a Alemanha, país cuja área territorial é 95% menor que a brasileira, possui quase 20 mil quilômetros a mais de trilhos. “Se o Brasil construir as ferrovias, a demanda aparecerá. Para longas distâncias, transporte sobre trilhos é mais versátil, tem menor custo e se torna mais viável para cargas de alto volume e baixo valor agregado”, afirma o coordenador do Ipea, Carlos Campos Neto.
Uma última preocupação diz respeito à segurança e à velocidade do transporte praticado sobre trilhos. Estima-se que, no Brasil, cerca de 200 mil famílias morem dentro da faixa de segurança que deveria existir à margem das ferrovias, que varia de 7 a 12 metros, dependendo das condições do terreno. Essas invasões, na maioria das vezes ignoradas pelos administradores públicos, além de colocar em risco a população, obrigam as locomotivas a diminuir bastante a velocidade, quando não a parar totalmente, aumentando o tempo de viagem. As excessivas passagens de nível – cruzamentos das ferrovias com rodovias – são outro motivo constante de reclamação de quem atua na área.
Carga pesada
O principal projeto para assegurar a expansão necessária é a conclusão da Ferrovia Norte-Sul, responsável por ligar Açailândia (MA) a Panorama (SP), em um trecho de mais de 2 mil quilômetros. Essa via é chamada pelos técnicos do governo de “espinha dorsal do transporte ferroviário brasileiro”, porque facilitará conexões com outras estradas que levam até os portos e atenderá regiões produtoras de grãos do centro-oeste e zonas industriais do nordeste e do sudeste. A ferrovia começou a ser construída em 1987 e já tem uma pequena parte concluída, 215 quilômetros, que são utilizados pela Vale para levar minério até a Estrada de Ferro Carajás, a qual alcança o Porto de Itaqui, no Maranhão. Outros trechos, que representam 70% do restante do trajeto, estão em obras, mas a entrega teve de ser adiada por problemas causados pela troca das empresas contratadas pelo governo para a construção. A expectativa é que toda a Norte-Sul esteja concluída até 2012, a um custo estimado de aproximadamente R$ 7 bilhões.
Para o setor do agronegócio, uma das ferrovias mais importantes é a chamada linha Leste-Oeste, cujo objetivo será conectar o porto baiano de Ilhéus ao interior do Tocantins. Com aproximadamente 1,5 mil quilômetros e previsão de custo de R$ 6 bilhões, essa ferrovia estará ligada ao eixo Norte-Sul e, segundo a Valec, estimulará o desenvolvimento da produção agrícola do oeste da Bahia. É inegável, porém, que também atenderá outros interesses empresariais, pois permitirá um escoamento mais rápido do minério produzido na região de Caetité, no interior do estado.
A Ferrovia Transnordestina, com conclusão prevista para 2012 e custo estimado em R$ 5,4 bilhões, é um projeto encabeçado pela CSN e vai ligar os portos de Pecém, no Ceará, e Suape, em Pernambuco, ao Piauí. Sua implantação ajudará, de acordo com o governo, a aumentar a competitividade da produção agrícola na região.
O Ferroanel de São Paulo, obra que estava prevista na primeira fase do PAC, mas não tem prazo para sair do papel por causa de disputas políticas, é outro projeto considerado essencial para aprimorar o escoamento da produção. O projeto, orçado em R$ 2 bilhões, previa a interligação das principais ferrovias do estado, aproveitando parte do trajeto do rodoanel, via que possibilita aos caminhões alcançar diferentes rodovias sem passar pelo trânsito caótico da capital. O Ferroanel permitiria uma distribuição mais eficiente da carga sem a necessidade de utilizar os trilhos ocupados pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos para o transporte de passageiros.
Apesar dessas vantagens, o destino de boa parte das mercadorias movimentadas pelo Ferroanel acabaria sendo o porto do Rio de Janeiro e não o de Santos, como deseja o governo estadual. Mais do que isso, não ficou claro como as empresas concessionárias que exploram as linhas paulistas seriam remuneradas e o projeto, então, foi paralisado – uma prova de que, mesmo com verbas disponíveis, estudos atualizados e a necessidade clara de expandir o transporte sobre trilhos, o apoio político ainda se move à velocidade de uma maria-fumaça e pode colocar em risco o tão esperado crescimento do setor ferroviário no país.
Revista Problemas Brasileiros