quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

A difícil e esquecida questão do Saara Ocidental



A difícil e esquecida questão do Saara Ocidental
por Pio Penna Filho
21/01/2010
O Saara Ocidental é o único território continental africano que ainda não goza de independência. Trata-se de um problema que vem se arrastando desde 1976, quando os espanhóis deixaram a antiga colônia do Saara Espanhol e, na sequência, o Reino do Marrocos anexou o território, apesar dos protestos e da disposição da Frente Polisário, movimento criado em 1973 e que representa os interesses do povo saaráui, de continuar a luta contra o que entendem ser o novo opressor. Vale lembrar que na época da retirada dos espanhóis também a Mauritânia invadiu o território, disputando-o com o Marrocos, mas retirando-se poucos anos depois (1979). Esse é, portanto, um problema internacional antigo e que continua afligindo milhares de pessoas que são obrigadas a sobreviverem em campos de refugiados em condições precaríssimas.

Em termos econômicos o território não possui grande diversidade de recursos, embora o que possua seja mais do que suficiente para a sua exígua população. Os setores mais importantes resumem-se à exploração dos depósitos de fosfato e atividades de pesca, além da existência de algumas reservas de minérios de ferro. Todavia, especula-se sobre a possibilidade da existência de campos de gás e petróleo off-shore. Caso se confirmem essas reservas o panorama econômico do território pode mudar substancialmente.

O Saara Ocidental entrou na cena política internacional na fase tardia da descolonização, fato que teve implicações para o seu status atual. Assim como Portugal, a Espanha tentou estender ao máximo a sua presença em África, numa perspectiva compatível com o regime ditatorial franquista. Com o fim do regime, as autoridades espanholas retiraram-se do território sem proceder à transferência do poder para o movimento autonomista aceito como representativo do povo saaráui, no caso, a Frente Polisário. A atitude dos espanhóis tornou a situação ainda mais complicada, uma vez que decidiram dividir a administração do território entre o Marrocos (Norte) e a Mauritânia (Sul), o que fez com que a Frente Polisário abrisse duas frentes de combate e derrotasse, por força das armas, a invasão mauritana. Isso foi possível, em parte, pela ajuda que o governo da Argélia concedeu à Frente e pela fragilidade do regime mauritano.

A guerra contra o Marrocos se prolongou por quase duas décadas até que o envolvimento das Nações Unidas fez com que houvesse uma tentativa de encaminhamento político para a questão. Nesse meio tempo muitas atrocidades foram cometidas de lado a lado (mesmo que de forma desproporcional) e o território virou, literalmente, um campo minado. Estima-se que foram enterradas no deserto entre 3 e 7 milhões de minas (de variadas procedências e tipos), dando ao território o indesejável título de possuir o mais longo campo de minas contínuo do mundo. Concomitante a isso, o governo marroquino ergueu um impressionante muro de areia com uma extensão de 2.500 a 2.700 km, conhecido como The Berm, isolando as áreas controladas pela Frente Polisário (aproximadamente 20%) do resto do país. Aliás, esse é mais um dos muros pouco conhecidos e que menos atenção despertou e desperta ao redor do mundo, malgrado seu terrível impacto sobre as populações autóctones (ao contrário, por exemplo, do estardalhaço e de uma certa espécie de glamour que se criou em torno do muro de Berlim). No período de guerra efetiva com o governo marroquino também foram erigidos pelo menos 4 campos de refugiados, cada um contendo cerca de 40 mil pessoas, que tiveram que sobreviver em condições ainda mais severas na difícil vida em regiões desérticas.

Em 1991, após vários anos de negociações entre a Frente Polisário e o governo do Marrocos, intermediadas pela ONU, o Conselho de Segurança das Nações Unidas, por meio da Resolução 690, estabeleceu a Missão das Nações Unidas para o Referendo no Saara Ocidental (Minurso). O principal objetivo da Minurso era encaminhar o referendo para uma decisão política sobre a questão do território, que deveria ocorrer até janeiro de 1992, um cronograma considerado irreal tendo em vista a exigüidade do tempo para a tarefa complexa que era a de montar a lista de eleitores e preparar todo o processo de consulta numa região com infra-estrutura precária. Basicamente, a população do Saara deveria responder se desejava a autodeterminação com a criação de um novo país ou se preferia ser integrada ao reino do Marrocos.

A Minurso, todavia, nunca conseguiu criar condições efetivas para que o referendo acontecesse. Inicialmente havia divergências, sobretudo, com relação a quem estaria apto a votar. Os únicos dados populacionais disponíveis à época eram os que constavam no censo realizado pelos espanhóis em 1974, que revelava um total de 74.000 saauaris vivendo no território. Vale lembrar que esses dados eram duvidosos e certamente incompletos, uma vez que uma das características do povo saaráui é o fato de serem nômades. De toda forma, nas negociações iniciais, tomou-se por base esse número, porém com propostas de ajustes.

A Frente Polisário desejava incluir todos os que estavam vivendo no exílio, principalmente em Tindouf (principal campo de exilados saaráuis, localizado na vizinha Argélia), e que não estavam na lista original. Já o Marrocos queria acrescentar cerca de 200.000 pessoas no quadro de aptos a votar, boa parte delas enviadas ao território em 1975 num episódio conhecido com a “Marcha Verde”, quando o governo marroquino estimulou a imigração de colonos a partir do Marrocos, numa deliberada tentativa de alterar a composição demográfica vigente à época do colonialismo espanhol.

A discussão de quem poderia participar do referendo se arrastou por anos e serviu como justificativa para que o referendo nunca fosse realizado, sobretudo por iniciativas do Marrocos, que entrou com um recurso atrás do outro para tornar mais pessoas aptas a votar (na verdade, um subterfúgio), além de ampliar o grau de exigências até o ponto de não admitir mais que na eventualidade da realização do referendo neste constasse a possibilidade de independência do território (o máximo admitido pelo monarca marroquino passou a ser uma relativa autonomia no âmbito do Reino).

A ONU ainda tentou retomar a discussão no final dos anos 1990 e nomeou o ex-Secretário de Estado norte-americano, James Baker III, como Enviado Especial das Nações Unidas para o Saara Ocidental. Pelo seu plano, conhecido como “Plano Baker”, a proposta do referendo seria retomada e o seu cronograma, refeito. Mas, dessa vez enfatizando a consulta por maior autonomia do território, sem admitir, pelo menos inicialmente, a sua independência. De acordo com o Plano Baker, a região seria reconhecida como semi-autônoma e, num período de 4 a 5 anos se realizaria o referendo contando com a participação de todos os habitantes do território, que aí sim poderiam decidir pela independência, a autonomia no âmbito do Reino ou a integração ao Marrocos.

Tanto o governo marroquino quanto a Frente Polisário rejeitaram o plano. O Marrocos, como afirmado, não admitia mais a idéia de independência, aceitando no máximo a autonomia sob soberania marroquina. Já a Frente Polisário o considerava insatisfatório e insuficiente, além de observar que o mesmo fazia concessões demais para o governo do Marrocos. Vale ressaltar que na reformulação do Plano Baker, conhecido como Plano Baker II, de janeiro de 2003, este foi inicialmente rejeitado pelos dois lados, mas a Frente Polisário, pressionada pela Argélia e pela Espanha, e numa tentativa de quebrar o impasse do processo de paz, aceitou o novo plano, que de toda forma não foi implementado.

Na última década verificaram-se novas iniciativas que buscaram resgatar o espírito do referendo e o encaminhamento da questão do Saara Ocidental, mas sem nenhum resultado concreto. Isso se deve em grande medida à falta de compromisso do Conselho de Segurança das Nações Unidas em se engajar efetivamente na solução da questão. Apoiado às vezes discretamente, às vezes mais abertamente, pela França e pelos Estados Unidos, ambos membros permanentes do Conselho, o governo marroquino continua mantendo-se inflexível na anexação pura e simples do território ou, então, sinalizando com uma vaga concessão de mais autonomia para o território.

A questão do Saara Ocidental já se transformou, pode-se dizer, num tipo de conflito esquecido, no qual as esperanças de uma solução vão se esvaindo lentamente, sem que ninguém tome, de fato, uma atitude concreta que leve a uma solução para o problema. Enquanto isso, o governo marroquino é acusado de violação sistemática dos direitos humanos sem que nada aconteça, inclusive segue mantendo-se como aliado dos Estados Unidos, da França e da Espanha. Apesar da presença de uma missão das Nações Unidas (aliás, de difícil definição), também nada de efetivo ocorreu na última década para a realização do referendo, aparentemente o único caminho político para a resolução do conflito. O tempo parece estar jogando a favor do Marrocos, que em meio ao arrefecimento da questão no contexto da onda do “terrorismo” internacional, continua como poder dominante.

Pio Penna Filho é Professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo – USP (piopenna@gmail.com).

Meridiano 47

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